“Vou te contar a história toda...”

23/10/21

A pedagoga aposentada, Maria Helena Ferreira Evaristo, puxa o fio de sua memória e compartilha sobre sua infância, sua vida em Belo Horizonte e sua contribuição na Biblioteca Pública Estadual de Minas Gerais.

Memórias da pedagoga Maria Helena Ferreira Evaristo, uma expert em encurtar distâncias entre as pessoas e os livros.

A habilidade de reter lembranças antigas é uma das mais formidáveis qualidades de Maria Helena Ferreira Evaristo, pedagoga aposentada após duas décadas e meia de atuação na Biblioteca Pública Estadual de Minas Gerais, em Belo Horizonte. Aos 67 anos, a mulher recorda-se perfeitamente das lições de alfabetização no Grupo Escolar Marcolino de Barros, no município de Patos de Minas, onde nasceu.

Dá para ver que a Maria Helena se sente imensamente feliz ao falar sobre o rancho de pau a pique onde os pais dela moravam quando era criança. Ela se lembra com riqueza de detalhes da mobília tradicional, da fartura na mesa da família e, especialmente, da ternura da mãe, Claricinda Corrêa Ferreira, que cantava todas as noites para fazer adormecer a ela e aos seus dez irmãos. Podemos entender porque a saudade do casarão dos avós a enfeitiça para todo o sempre. Naquela sala, abarrotada por vizinhos curiosos, Maria assistiu na televisão ao primeiro homem na História a pisar em solo lunar.

Aprendeu a ler nos anos de 1960 com “As mais belas histórias”, série clássica do universo infantojuvenil escrita pela pedagoga mineira Lúcia Monteiro Casasanta. A identificação de elementos do seu cotidiano na fábula “Os três porquinhos” aborreceu a pequena Maria, que não gostou da associação entre preguiça e a técnica construtiva utilizada por um dos porquinhos para erguer sua casa própria, afinal, todas as moradias do vilarejo onde vivia eram feitas de madeira. Ela sabia que outros materiais de construção não chegavam na área rural pela ausência de estradas e infraestrutura.

O que pensou ou o que sentiu, naquele momento da infância, moldou o seu espírito crítico e serviu como um alerta para os efeitos nocivos da difusão de ideias preconceituosas, que reproduzidas se transformam em correntes para o pensamento.

Muito tempo depois, à  frente do Setor Educativo da maior Biblioteca Pública do estado de Minas Gerais, a movimentação de Maria Helena ajudou a encurtar distâncias entre as pessoas e os livros. Esta entrevista revela que a boniteza de sua prática pedagógica tem como principais características a sensibilidade para abraçar os contextos dos diferentes grupos acolhidos no espaço da BPEMG, somada ao entendimento da potencialidade de ensinar-aprendendo.

Naturalmente, desperta boas recordações na antiga equipe de trabalho: “Sua empatia e conhecimento dos interesses da comunidade nos levou a várias parcerias, como o Intensivo Filosófico para o Enem/UFMG, Curso de Redação para o Enem, Projeto Preta Poeta, Mostra MUMIA, Teatro Palavra Viva, dentre outras”, elogiou a bibliotecária Adriana Márcia de Deus, chefe de Maria durante o período final da carreira como técnica de cultura no Setor de Referências e Estudos. “Seu legado é inspiração, prática e agradecimento”, completa.

Espero com este conteúdo poder esmiuçar e valorizar a trajetória de vida da Maria Helena, e sobretudo, que outras e outros ativistas da inclusão sociocultural possam se reconhecer nessas memórias de afeto e luta. Venha ler nosso bate-papo!

Para começar a entrevista, gostaria de tirar uma curiosidade do público. Você é parente da escritora, poeta e ensaísta Conceição Evaristo? 

Não. O sobrenome Evaristo foi acrescentado ao meu nome quando me casei. Naquela época era comum herdarmos o sobrenome do marido. Ele também não tem parentesco com a escritora. Eu queria acrescentar o sobrenome materno, na verdade. O meu pai, infelizmente, me deu apenas o sobrenome dele, o Ferreira. Depois de algumas discussões em família, meu irmão caçula herdou o sobrenome da nossa mãe.

Pensando bem sobre esse assunto, acho que foi vantajoso mudar meu nome de solteira. Frequentemente, encontrava outras pessoas que tinham exatamente  o mesmo nome que eu. Só na escola normal de Patos de Minas éramos quatro Maria Helena Ferreira, na lista de presença. Eu não gostava de ser chamada de “Maria Helena n° 2”, não achava apropriado numerarem as pessoas.

Maria, quando você nasceu?

Dia 07 de julho de 1954.

O ano em que Getúlio Vargas morreu… 

Ano que a Biblioteca foi criada.

Em qual ano você chegou em Belo Horizonte?

1972.

Então, você estava com 18 anos de idade. Isso foi durante o regime militar.

Sim… vim para estudar no Colégio Tiradentes, que não é uma escola de militares. Trata-se de uma escola de filhos de militares.

Na Escola Normal de Patos de Minas você só estudava com mulheres?

No curso normal do Colégio Tiradentes também. Até a quarta série, estudei em turmas mistas, nos grupos escolares do estado.

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A Escola Normal era equivalente ao ensino profissionalizante?

Era um curso para formação de professoras.

E você lecionou, Maria?

Só nos estágios.

Nessa época, quando você chegou em BH, você pensava em lecionar?

Nunca pensei. Esse pensamento de ser professora era uma coisa de família. Meu pai dizia orgulhoso: "sou um roceiro sem estudo, mas as minhas filhas se formaram professoras". Todas fizeram formação para professoras, exceto a Giza.

Então não era sua escolha?

Não. Se fosse escolher, queria ser advogada. Fiz vestibular na UFMG, em 1974, quando a prova ainda era  no Mineirão. A gente fazia a prova sentados nas arquibancadas do estádio e o Tostão, o jogador de futebol, que se formou em Medicina depois, se sentou um pouco acima de mim. Como não fui classificada,  tive que trabalhar e só fui fazer vestibular novamente depois dos filhos criados. Como já estava na Biblioteca e gostava do que fazia, resolvi dar sequência na área da Educação fazendo o curso de Pedagogia. Depois fiz pós-graduação em Biblioteconomia.

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Maria, mudando um pouco de assunto, agora, gostaria de saber se você se lembra do assassinato da Ângela Diniz (1944-1976), no ano de 1976. 

Lembro sim. Foi assassinada pelo namorado. Quando eu estava em lua de mel, em Cabo Frio, estava acontecendo o julgamento do Doca Street (assassino dela). Foi muito falado, a exemplo do caso da Eliza Samudio.

É verdade que assassinato da Ângela Diniz gerou muita repercussão na imprensa e agitou as feministas da época?

Sim, porque ela era uma socialite famosa!

No ano 1980, o movimento “Quem Ama não Mata” fez um ato emblemático na escadaria da Igreja São José, aqui em Belo Horizonte, em protesto a outros casos de feminicídio. Fico pensando se você se interessou pela questão, naquele momento...

Sim, me lembro mais ou menos. Se procurar nos jornais da época, na Hemeroteca Histórica, deve ter muita coisa.

Saberia nos dizer como o ato repercutiu na imprensa da cidade?

Não sei dizer, não tinha o hábito de ver televisão.

Por que motivo, Maria?

Não tinha tempo. Chegava do trabalho bem tarde e cansada. Dormia cedo.

Como você e seu esposo se conheceram?

Lá em Patos não me lembro de frequentar a biblioteca da escola, mas quando eu vim estudar no Colégio Tiradentes gostei da biblioteca escolar – lá me falaram da Biblioteca Pública. Nos dois anos em que estudei no Tiradentes, toda semana eu ia para a biblioteca fazer pesquisa.

Quando eu estava no segundo ano do ensino médio, fiz estágio dentro do próprio colégio. Muita gente fazia fora, mas eu morava perto, não tinha muito dinheiro para pagar ônibus e nem sabia andar em BH. Certa vez, eu estava estagiando em uma sala da quarta série com uma professora chamada Zuleica. Como você sabe, estagiária é pau para toda obra. Não sei se em agosto, setembro ou outubro, acontecia uma feira de profissões com exposição de objetos relacionados às diversas profissões.

Eu morava na rua Eurita, na  primeira casa de dois andares que dá para ver da minha atual casa e o Neno morava em frente. Vou te contar o que que aconteceu. Na escola, sugeriram que tanto os alunos, quanto os estagiários levassem material de profissões diferentes e, na época, a Vera, minha amiga, me falou: "Minha filha, fiquei sabendo que tem um marinheiro da marinha de guerra passando férias aqui no bairro Santa Tereza. Diz que ele mora lá na Eurita. Você tem coragem de ir lá falar com ele, Maria Helena?". 

Fui atrás do marinheiro de guerra para que falasse sobre a profissão dele na feira. O Neno, muito tímido, não quis dar a entrevista na escola para os meninos, então marquei com ele e trouxe um gravadorzinho que chamava dunguinha, pequenininho, e gravei a entrevista. Fiquei puta com ele, porque eu queria que fosse dar a entrevista ao vivo, mas mesmo assim eu cumpri a minha missão.

Muito educadamente me emprestou toda a parafernália da marinha: o uniforme de gala que era branco com listras azuis, o quepe, o outro uniforme, aquele trem bonitinho, aquela gola quadrada de marinheiro que era azul marinho com branco. Levei todas as coisas para a feira, menos o sapato – eu falei para ele: "o sapato eu não quero, não!" (disse rindo). Eu expus o material e, assim, não me interessei muito por ele. Lembro que teve muita discussão no Colégio, porque uma pessoa levou um indígena na feira e alguém falou que “índio” não era profissão, vish! Era bem legal participar desses trabalhos, mas o estagiário “pegava rabo”, viu!

Depois, eu não sei porque vias, eu fazia trabalho na biblioteca e, às vezes, encontrava ele na praça de Santa Tereza. A irmã dele me falou que me via descer a Eurita quando ela estava sentada na escada com a mãe deles tomando Sol. "Que menina lindinha de pernas bonitas.", diz que todos os dias a mãe dele falava isso (disse gargalhando). Isso foi a Cira que já me contou.

Onde eu ia, encontrava ele. Quando eu passei a frequentar a Biblioteca, ele ia, entendeu? A gente não namorava lá dentro, mas começamos a flertar. Era um trem despistado, assim, não era de chegar e falar: "você quer namorar comigo?". Era assim: de repente, estou vendo: "oh o marinheiro ali". Então durante as férias dele passei a vê-lo todos os dias. Depois o Neno foi para um porto em Hamburgo, na Alemanha, mas a mãe dele adoeceu. Ele sempre foi muito ligado à família, então pediu baixa na marinha. A gente trocou apenas um postal enquanto ele estava na Alemanha.

Acho que nós já estávamos namorando quando me formei, em 1974, porque ele foi comigo no baile de formatura. Eu poderia levar três pessoas, então convidei o Neno, minha madrinha Manuelina e o marido dela. Foi quando se configurou  mesmo o namoro, entendeu? É aí que você vê como o destino é, não é? Chamar uma pessoa com uma profissão diferenciada para dar entrevista para os alunos onde eu estava fazendo estágio... e é meu marido hoje, pai dos meus três filhos, essa pessoa maravilhosa. 

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Agora, vamos voltando um pouco mais no tempo. Como começou a sua história de vida?

Vão bora para Patos de Minas! Tenho que te contar a história do começo. Eu nasci em Patos de Minas, mas meus pais sempre moraram em fazendas. Meu pai era um tipo agregado das fazendas do meu avô. Os filhos é que tomavam conta das fazendas do meu avô e o meu pai é que ficava no comando, então os meus pais moravam na roça e eu embora tenha nascido em Patos, fiquei morando na roça com meus pais e fui mesmo morar em Patos a partir dos sete anos.

Na verdade, eu entrei para a escola com sete anos e meio porque lá naquela época tinha uma lei  que só entrava para escola com sete anos quem nascia até 30 de abril. Eu sou de sete de julho, então eu tive que completar sete anos e entrar para escola com sete anos e meio. Eu era revoltada com isso! (disse rindo). Eu tinha um colega de seis que ainda iria completar sete anos. Em abril, eu já estava com sete anos e meio. A roça era muito boa, a gente gostava. Mas eu acho que foi bom. Foi um amadurecimento legal, eu aprendi a ler rápido.

Quando eu fui para Patos para estudar, eu fiquei na casa da minha avó com mais três irmãs e duas primas. Éramos sete crianças na casa da minha avó, além dos filhos dela. Era uma casa diariamente com dezesseis pessoas.  A casa era enorme, quer dizer... é enorme. Essa casa ainda está lá em Patos, em estilo moderno com um alpendre que as pessoas hoje chamam de varanda de mais ou menos 15 metros, uma sala gigante, Quatro quartos davam direto para essa sala e mais dois quartos davam direto para a copa onde tinha um lavabo. A casa dos meus avós era uma mansão, digamos assim. Um quintal gigante, cheio de fruteiras: jabuticabeira, mangueira, abacateiro e muitas outras frutas.

Na frente da casa tinha um jardim com três repartições - uma que dava para a garagem grande, onde normalmente sempre tinha dois carros. Nós tínhamos um espaço com mesa de ping pong e o jardim era todo florido: tinha copo de leite, margarida, pingo de ouro verdinho – igual aquelas plantas da praça da Liberdade. Tinha cozinha do lado de fora com fogão a lenha, sabe? Então era uma casa da cidade que tinha um pouco de roça, né?

Hoje em dia, essa casa virou uma clínica odontológica (para você ver o tanto que ela era grande). Todas as vezes que eu vou a Patos dou uma passadinha lá na rua e olho se as fruteiras ainda estão lá no fundo, se no cantinho da entrada ainda tem o pé de romã que dava fruta o ano inteiro.

O que eu acho interessante falar é que morávamos as quatro irmãs e as duas primas mais os meus tios. A gente considerava a tia mais nova quase como uma irmã, pois a diferença de idade dela para mim era de quatro anos. Nós tínhamos a função de estudar, mas a minha avó não nos proibiu de brincar. Ela era uma pessoa austera, mas tratava todos os netos muito bem.

Era interessante que umas coisas que minha vó fazia, que na época eu ficava incomodada, depois que eu cresci, fui ver que ela era uma pessoa muito justa. Havia muitas pessoas para comer, tinha almoço e jantar todos os dias, então ela gostava de que todo mundo comesse igualmente - por exemplo, uma coisa que se fazia muito na casa da minha vó era banana marmelo frita. Vovó distribuía os pedaços para todos comerem o mesmo tanto. Se partia um abacaxi, ela dava um jeito de cortar de forma que cada um comesse pelo menos um pedaço. Quando era pequena, eu achava que era ridiqueza, mas com tantas pessoas para comer em uma casa, pensa bem? Depois de crescer, fui vendo que minha avó era muito justa e muito sábia na distribuição da comida.

Uma coisa que também  incomodava a gente quando era criança e adolescente é a distribuição de tarefas. Eu aprendi a lavar o meu uniforme assim que entrei para a escola. Todas as netas que moravam com vovó sabiam lavar roupa. Hoje em dia, eu sei que se eu lavava e ficava mal enxaguado, ela ia lá e enxaguava novamente. E lavar vasilha: uma ensaboava, uma enxaguava,  a outra passava o pano no chão da cozinha. Dividia o jardim da frente para duas, então uma neta varria de um lado e outra neta de outro lado. Então a vovó distribuía muito bem entre as netas e as filhas dela. Todos os homens trabalhavam na roça. Hoje em dia fico imaginando – como uma avó ficaria com sete crianças  dentro de casa, além dos próprios filhos se ela não fizesse isso? Atualmente estou aqui com meus dois netos de três e dois anos de idade e eles já têm a obrigação de juntar os brinquedos.

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Maria, quais são as suas memórias mais afetivas de Patos de Minas, a sua cidade natal?

Ainda sinto o cheiro da sopa da escola que era feita só para os meninos da caixa escolar, pois não podiam levar merenda. Eu era doida pra comer aquela sopa! Hoje em dia a merenda é para todos, mas naquela só os estudantes pobres ou carentes podiam comer a sopa da escola. Isso foi em 1960 e alguma coisa…

Me lembrei de outra coisa. Eu sei jogar ping pong porque na casa da minha vó tinha mesa. Todo ano acontecia um campeonato de tênis de mesa, que é como o pessoal fala hoje em dia – a gente chamava de ping pong. Eram campeonatos competitivos! Os filhos da minha vó chamavam outras pessoas para disputarem os jogos e eu ficava louca para participar, mas como era criança, não podia. Sentia uma invejinha, sabe?

O dia que meu avô me levou para a escola pela primeira vez foi uma coisa que ficou muito presente na minha memória. Meu avô era maravilhoso, ele brincava comigo e com minhas primas. Ele falava assim: “olha a menina dentro dos meus olhos!”Morreu jovem. Quando aconteceu, eu sofri muito. Lembro que eu fui para a escola e quem dirigiu foi meu tio, no jipe do meu avô, que não dirigia. Lembro do caminho da escola, muito próxima da casa da minha avó, na principal avenida de Patos, naquela época, com duas praças e a igreja matriz.

Estudei na Escola Professor Marcolino de Barros. Na primeira série a minha professora cantava muito, alfabetizava a gente cantando "Lá em cima tem o tiro-liro-liro”, “O patinho". Ela se chamava dona Inácia, não era novinha. Já era assim de meia idade.

Eu tinha uma professora, não lembro se foi na segunda série ou na terceira, mas eu já sabia escrever. A gente fazia aqueles ditados e, quando se errava uma palavra, escrevia a palavra um tanto de vezes. Um dia algum colega errou o ditado com as palavras escritas com “j”. Eu nunca esqueci este versinho, que é assim: "Jeca, jeito e jiló com “j” vou escrever/ também canjica e jacó e nunca vou me esquecer!" A professora dizia: “então agora vamos repetir: "Jeca, jeito e jiló com “j” vou escrever/ também canjica e Jacó e nunca vou me esquecer!" Hoje eu vejo tanta coisa na internet com a escrita trocada: jeito com g, jeca com g, canjica com g (disse gargalhando). Não me lembro o nome dessa professora, mas nunca esqueci o verso e nunca errei essas palavras!

Você guarda alguma memória literária da época da infância?

Sim, várias, principalmente da coleção“As mais belas Histórias" de Lúcia Monteiro Casassanta. Me lembro que recebia os livros gratuitamente a partir do Pré-livro. A coleção continha poesias e pequenos contos repletos de valores simbólicos e afetivos. Me lembro de “A canção dos tamanquinhos”, de Cecília Meireles e até sonhava em ganhar um par de tamanquinhos.“O Corcunda” também foi uma história marcante para mim. Essas e outras histórias continuam vivas na minha memória, no entanto, “Os três porquinhos'' tem espaço cativo no meu coração e na minha mente, pois fui alfabetizada por meio dela. Depois de ser alfabetizada, pude ler a continuação da história “Os três porquinhos”, no livro de leitura Intermediária.

Seus pais tinham estudo, Maria Helena?

Não. Meu pai tinha estudado até a segunda série primária e minha mãe até a quarta, mas tinha uma letra lindíssima. Escrevia muito bem - quem estudava até a quarta série, naquela época, não errava nada. Meu pai gostava muito de ler, lia jornal todo dia, gostava de revistas. Escrevia direitinho, mas errava algumas coisas no português e era bom de matemática. Só falando para você acreditar que ele só tinha até a segunda série, que como se diz foi muito bem feita.

Meu pai gostava de ouvir o rádio, dava notícia de tudo, de política. Lembro direitinho do meu pai tremendo na frente do rádio quando explodiu o golpe, enquanto estava ouvindo o discurso do Carlos Lacerda. Nunca esqueci de como ele tremia – eu não entendia porque ele estava tremendo. Era de medo! Nunca conversei com meu pai sobre isso, pois estava só de passagem em Patos e no outro dia ele foi embora. Quando fui atinar do que foi o Golpe, eu já era adulta. Quando a gente era criança, não tinha noção, embora eu lembre das coisas

Você pode nos falar mais sobre a parte da sua família formada por suas irmãs, irmãos e pelos seus pais?

Vou te contar a história toda… A gente ficava em Patos para estudar – que era um mundo completamente diferente da roça. Já no primeiro dia das férias, meu pai buscava eu e as minhas irmãs para voltarmos para nossa casa. Eu me lembro que pegávamos uma jardineira em Patos e que a gente enjoava pra caramba na viagem.

A estrada era de chão e nossa casa ficava muito longe. Nós parávamos em uma fazenda próxima da rodovia de terra, onde a jardineira nos deixava. Lá, dormíamos na casa do fazendeiro, que era amigo do meu pai. No dia seguinte, tínhamos que sair cedinho para continuar o caminho para a roça, que não era acessível de carro. Acho que a gente dormia nessa fazenda por causa do horário do ônibus –  saia de Patos, por volta de 13 horas e chegava às 18 horas, então a gente dormia lá para não ter que viajar a cavalo durante a noite.

Nós éramos quatro irmãs, meu pai ia em um cavalo puxando mais dois cavalos nos quais uma ia montada na garupa da outra. Às vezes eu ou a minha irmã mais velha íamos sozinhas enquanto a outra montava a garupa do cavalo do meu pai.  Eu não sei precisar quanto tempo a gente viajava andando a cavalo, mas era muito tempo.

Tinha muita grota e a gente atravessava o rio a cavalo, sabe? Na época das cheias, às vezes o meu pai já atrasou para buscar a gente, porque o rio estava muito cheio. Eu já atravessei um rio cheio também montada no cavalo, mas era muito legal, porque a mamãe morria de saudade da gente. Chegava lá, era uma festa!

Minha mãe sempre foi muito boa de cozinha. Em época de milho verde, tinha pamonha, mingau de milho verde assado e milho cozido. Então, aquelas comidas de roça (canjica, arroz doce) eram feitas com muita fartura. Eu me lembro que lá se fazia rapadura. Minha mãe ralava rapadura para colocar no requeijão preto quentinho.

Como a sua mãe era?

A minha mãe era aquela mulher de voz mansa, super calma para conversar – parece com Eliane, minha irmã. A mãe trabalhava muito, mas todos os dias se deitava conosco antes de dormirmos. Lembro direitinho dela cantando "Colcha de Retalho", “Oh, Ciganinha", "Minha mãezinha querida", nossa... eram tantas. Ela tinha uma voz lindíssima e cantava muitas músicas, mas nunca foi de contar história para a gente dormir. A gente dormia embolado no quarto dela e só depois é que nós íamos para as nossas camas. Isso é uma coisa muito legal de ser lembrada. Deitava aquele tanto de criança na cama da minha mãe, pois éramos onze filhos. Acaba que a gente, quando ficava mais velha, ia se deitando do lado e os pequenos ficavam mais perto da mãe, na hora de dormir.

Você se lembra do assassinato do Edson Luiz Lima Souto, em 1968, durante uma manifestação estudantil? Foi um fato político chocante.

Claro! Edson Luiz foi aquele estudante assassinado no RJ, senão me engano, durante a Ditadura. Eu me lembro perfeitamente de ver a foto do Edson Luiz dentro do caixão com o rosto  aparente, nas capas de revista que ficavam na casa da minha avó. Me lembro que meus avós assinavam a Realidade e a Manchete, então pode até ter sido em uma delas. Eram  consideradas revistas para pessoas adultas, por isso eu não tinha muito acesso, mas lembro direitinho da foto. Me lembro de algumas coisas da época da Ditadura, pois eu era criança. Em 1964 eu estava com dez anos, então. Mas ele não morreu em 64, eu acho que foi próximo ao AI 5 (Ato Institucional nº 5).

Quer ver uma coisa que ficou gravada na minha memória? Foi quando a minha avó comprou a primeira televisão, em 1969, para a gente ver o homem descendo na Lua. Lembro que minha avó aproveitou essa oportunidade para comprar a TV. A casa era gigante, então a sala da minha vó ficou lotada de gente querendo ver o homem descendo na Lua. A imagem "chapiscava" e era em preto e branco. A gente se reuniu para assistir e na hora o sinal ficou bom, foi nítido. Tem gente que não acredita, mas eu acreditei. No bairro, não era todo mundo que podia ter televisão, então quando teve a copa de 1970, a sala da minha avó também ficou lotada para assistirmos aos jogos.

Tem uma coisa que eu não te contei. Quando eu morava em Patos, duas das minhas irmãs faleceram, uma com dezoito anos e a outra com treze. A Ângela, que faleceu em 1969, nasceu depois de mim e a Lucinda, que morreu em 1972, tinha 17 para 18 anos, era mais velha que eu. Cresci ouvindo minha mãe falar que se ela tivesse tido só três filhas, ela só teria uma.

Todos esses velórios aconteceram nessa sala gigante, por isso eu acho que minha vó foi desgostando da cidade. Quando ela veio para BH, as minhas outras primas já tinham se mudado para Brasília, meu tio comprou uma fazenda lá perto.  As minha tias já estavam casadas, meus tios também e a casa era muito grande. Sobramos só eu e a Eliane das quatro irmãs que moravam na casa da minha avó para poder estudar.

Naquele tempo, Eliane, já sabia que queria continuar em Vazante, perto de onde meu pai estava morando. Quando ela estava no primeiro ano do ensino médio, faltavam professoras em Vazante e, então, começou a dar aula nas escolas. Como Eliane era menor de idade, meu pai tinha que sacar o salário para ela.

Quando minha avó se mudou para Belo Horizonte, tinha aberto vaga para civil no Colégio Tiradentes e eu passei na prova. Já tinha feito o primeiro ano em Patos, então vim terminar os dois últimos anos do curso normal. Eu achava que seria super difícil, mas quando fiz a primeira aula de psicologia, notei que já tinha visto toda a matéria antes. No interior as escolas sempre são muito boas, então eu não tive dificuldades.

Como começou a sua carreira profissional?

Quando eu terminei o ensino médio no Colégio Tiradentes, já tive uma oferta de emprego que pagava bem mais do que o salário de professora. Minha tia Manuelina era a diretora do Departamento de pessoal e quando eu me formei no Tiradentes surgiu uma vaga, então ela me convidou para trabalhar lá. Talvez seja por isso que eu nunca procurei designação pelo estado para dar aula. Foi assim que eu desviei completamente de estudar para vestibular. Naquela época, o povo achava que formar para ser professora já estava bom, não tinha essa motivação para fazer curso superior, entendeu?

Fui trabalhar na Federação dos Trabalhadores na Agricultura (FETAEMG) no Departamento de pessoal (recursos humanos) e depois fui secretária de diretoria. Eu era boa datilógrafa, redigia muitas atas e ofícios da diretoria. Recebia as amantes e não contava para as esposas dos diretores. Passei por isso.

Eu ganhava bem lá. Comecei a trabalhar bem jovem, o dia todo. A Federação está até hoje aqui na rua Álvares Maciel 144, no bairro Santa Efigênia, na mesma rua do Quartel de Polícia. Trabalhei na FETAEMG até quando o Diogo nasceu.  Daí decidi que tinha que criar os meus filhos para depois voltar a trabalhar quando o Marcus tinha quatro anos.

Quando o Diogo fez um ano, o Neno foi transferido para Curvelo, assumir o pólo de telecomunicações. A proposta foi muito boa: nós moramos numa casa que era uma mansãozinha com o aluguel pago. Quando voltamos para Belo Horizonte, em 1989, eu comecei a estudar para concurso e já tinha em mente trabalhar somente meio horário. Eu estudei bastante  e passei nos três concursos que eu fiz. Fui trabalhar na Biblioteca por escolha.

Maria, acho admirável que você guarde memórias vivas de todas as fases da sua história profissional. Por favor, escolha uma lembrança emblemática da sua trajetória na Biblioteca para nos contar.

Uma vez, escrevi um projeto de visitação programada à biblioteca. Nessas visitas, conheci alguns professores que eu sabia que eu poderia explorá-los — no sentido bom da palavra, de incentivar os estudantes à leitura (não gosto de usar a palavra alunos). Eles faziam visitas frequentes à Biblioteca, então eu comecei a sugerir:“por que vocês não trazem seus projetos de leitura para cá? Seria interessante!”.

Havia um professor que sempre visitava a Biblioteca e os meninos tinham que ler livros voltados para a questão do trabalho  —  era uma Escola de Menores Aprendizes, com estudantes de 16 a 20 anos, se não me engano. Ele criou o projeto “Leitura com prazer”, que rendeu muitos frutos. Esses estudantes tinham um tempo de leitura na biblioteca e depois eles levavam o resultado da leitura para a Escola e transformavam em um jornal.

Nas conversas com o professor, o incentivei a lançar o jornalzinho no espaço da Biblioteca. Eu agendava uma visita aos setores da Biblioteca  — porque neste jornal se falava sobre os livros do acervo que eles estavam lendo  —  e, então, os estudantes lançavam os jornais nos setores onde eles tinham feito leitura e deixavam um exemplar em cada setor. Foi um projeto que durou uns dois anos e foi muito elogiado. Eu percebi, não só por meio desse projeto, mas que a vontade do professor de fazer algo pelos estudantes conta muito. Quando o professor quer, a coisa flui! Essa é uma das memórias boas da minha trajetória na Biblioteca.

O que mais me emocionou, foi um projeto com uma outra escola de menores aprendizes. A gente acolhe todo tipo de público na BPEMG, mas os menores aprendizes amavam a biblioteca e frequentavam muito junto com os orientadores. Participei ativamente, junto com uma professora, de um projeto de leituras livres com duração de dois meses. Foi um projeto de incentivo à leitura literária, ou ao que eles tivessem interesse de ler. Então teve de tudo, durante esse período.

A princípio, a professora separou uma hora de leitura por dia (disse rindo), mas já no primeiro dia, os estudantes acabaram ficando uma hora e meia. Como tinham que voltar para a escola, porque todos trabalhavam em empresas, a professora teve que readaptar o horário e os meninos passaram a ler duas horas por dia.

À medida que eles foram lendo, fomos dando sugestões de leitura. Com base nessas sugestões, eles escolhiam os setores para onde iriam. Uns foram para as coleções especiais para ler sobre Leonardo da Vinci, havia uma estudante da comunidade dos Arturos que  resolveu montar um grupo de pesquisa, com quatro ou cinco colegas, para estudar os Arturos, na biblioteca tem muitos livros sobre o tema.

Havia alguns que não sabiam o que ler. Para estes eu disse: “leiam os clássicos da literatura, os contos de fadas e recontem, depois, do jeito de vocês”. Eles responderam: “que isso, tia? Ler contos de fadas? Nós vamos pegar na trança da Rapunzel? Ah, não! Aqui ninguém vai virar anão pra contar a história da Branca de Neve.” Quando enfim foram conhecer o setor infanto-juvenil, já estavam incomodados com as mesas baixinhas que têm lá, mas eu nem sabia o que eles estavam lendo. A biblioteca é  muito grande e o setor onde eu trabalhava (Setor de Referência e Estudos) fica no Anexo, o outro prédio, mas eu queria ver o resultado do projeto.

Quando perguntei para a professora como pretendia avaliar o resultado dessas leituras, ela me disse que ainda não sabia direito, mas que poderia ser uma ficha de avaliação para os estudantes preencherem. “ Faz isso não, professora. Vamos valorizar o trabalho dos meninos. As pessoas precisam de motivação. Por que a gente não faz uma finalização desse trabalho no Teatro da biblioteca?”, recomendei. O teatro é grandioso, lindíssimo, com capacidade para duzentas pessoas, então pensei que seria uma forma de valorizá-los, de fazer com que se sentissem super importantes.

A proposta de encerramento foi bem recebida e chamamos de“Manhã literária''. Foi aquela surpresa maravilhosa, emocionante. Falo com orgulho que eu participei disso, incentivei muito que fosse feito. Realizamos uma abertura bacana, que não perderia para nenhum evento. Convidei a superintendente da biblioteca, a coordenadora do setor, a diretora da escola, a professora e outros orientadores para assistirem a programação.

Uma estudante cantou um poema de Vinícius de Moraes. Nem a escola sabia que ela era cantora lírica. O que mais me chamou a atenção foram as adaptações dos contos de fadas.  Sei que nessa coisa da crítica, com todo mundo gozando da minha cara, foram os melhores trabalhos apresentados.

A história da Branca de Neve me deixou encantada pela forma inédita. A Branca era uma menina preta e os anões não eram anões, eram meninos altos. Eles estavam vestidos de roupa preta e ficavam o tempo todo atrás da Branca de Neve. Na adaptação, ela não comeu a maçã, mas bebeu um líquido sem saber o que era e desmaiou. Acredito que eles trouxeram o conto pro mundo deles , já que as princesas atualmente têm seguranças que as vigiam.

O reconto da Cinderela também foi muito interessante. Começava com uma discussão entre Cinderela e a mãe dela:“Não quero que você vá nesses bailes funks. Já falei com você que é muito perigoso! Chegando lá, você bebe, beija todo mundo… quero que arrume a casa para mim.” No reconto, Cinderela vai escondida da mãe para dançar e aproveitar o baile funk. Quando ela volta para a casa, a mãe pergunta o que que aconteceu e Cinderela responde que está com enjoos. “Você perdeu a virgindade no baile funk?”, pergunta. “Eu transei!”, a Cinderela responde. Então a mãe questiona: "como assim? Quem é o moleque que vai assumir seu filho? Como você vai criar essa criança?”. A história encerra-se assim, sem esclarecer se ela estava mesmo grávida ou não. Penso que a discussão é sobre as vivências desses jovens, sem essa coisa de príncipe da história original. Foi muito legal!

A primeira coisa que a gente perguntava, na hora de uma visita, era se alguém conhecia a Biblioteca e eles diziam: “Tia, isso aqui não é pra mim, não”. A Biblioteca é muito imponente, muito grande, muito bonita, por isso às vezes as pessoas pensam que aquele espaço não é para eles, mas é um espaço de todo mundo. A gente frisava isso demais: o espaço é de vocês, sintam-se em casa. Queríamos muito passar essa sensação de pertencimento. Isso é uma coisa que todos os funcionários fazem com muito zelo e convicção.

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Faz tempo que você vem trabalhando pela integração de pessoas excluídas e marginalizadas na sociedade. A partir de qual vivência você efetivamente se deu conta da necessidade de se comprometer com o tema da inclusão social?

Fiz faculdade já mais velha. Terminei o ensino médio e só 26 anos após é que decidi fazer Pedagogia, porque eu já estava na biblioteca e trabalhava no setor de pesquisa . Lá eu pude ver a deficiência da escola em dar esse feedback do resultado do ensino. Comecei a estudar sabendo que eu estava fazendo o curso certo, pois trabalhava com o público do ensino fundamental e médio na biblioteca. Sempre gostei de trabalhar com adolescentes.

Quando entrei pro curso, em 2002, tive uma colega com deficiência visual - como ela dizia, "não precisa falar que sou deficiente visual, pode me chamar de cega mesmo". A gente é muito amiga até hoje. Convivendo com a Luciana eu vi as dificuldades que a Faculdade tinha para lidar com uma estudante com deficiência visual. Ela não recebia nenhum material em braile, os professores passavam filmes legendados. Eu e uma outra colega ajudamos muito ela. Por exemplo, se você está lendo a legenda para o seu colega do lado, não consegue prestar atenção no filme então, era assim: quando eu lia para a Luciana, eu perdia metade do filme. Essa colega que também lia para a Luciana prestava atenção no filme para me contar o que tinha acontecido, e vice versa.

A partir disso, passei a ter outras percepções sobre aquelas aulas nas quais as professoras davam aula lá na frente, em código, desenhavam no quadro e diziam "Tá vendo isso aqui?" E eu pensava: isso aqui o que? A pessoa que é cega não vê isso aqui, entendeu? 

Teve um fato interessante. Nós tínhamos uma aula que chamava “Atividades de Integração Pedagógica”, que era a reunião com todos os professores para lavar a roupa suja. A gente falava tudo que não estávamos achando legal e os professores também. Em uma dessas reuniões nós vendamos os olhos dos professores e demos aula para eles em códigos, passamos trechos de documentários legendados. A partir disso, a postura deles mudou bastante. A minha turma era bem maluquinha.

A necessidade de lutar pela causa da inclusão começou a se acentuar quando escolhi analisar, como tema da monografia, as aulas das quatro professoras com deficiência visual que passaram no concurso de professoras das escolas da rede municipal de BH.  Todo mundo vigiava as salas delas, mas as crianças nem percebiam que elas eram cegas. Foi uma experiência bem bacana para mim.

Lembro que uma das professoras cegas era da turma de alfabetização e usava material didático emborrachado. Ela apalpava e entendia. Uma coisa que eu percebi é que as crianças alfabetizadas por ela com o material emborrachado aprendiam a ler no mesmo tempo das que tinham professoras videntes que usavam o material didático comum.

O preconceito está na cabeça dos adultos, porque as crianças chamavam a professora com deficiência visual e diziam "Tia, olha aqui o que eu fiz!". Ela falava: " mas você sabe que eu não enxergo!". As crianças não têm preconceito, os adultos é que vão passando isso de geração em geração, acredito eu.

De todas as exposições do projeto “Em Destaque” qual foi a sua favorita? Por quê?

Acho que isso foi em 2006. Nem vou dizer que foi a favorita, mas talvez tenha sido a exposição mais significativa para mim, porque a partir dela eu percebi que havia o reconhecimento coletivo de que meu projeto poderia dar certo. Partindo das sugestões de temas de leitores e de colegas da biblioteca, fiz a exposição do centenário de execução do primeiro voo do 14 Bis,  por Santos Dummont, que aconteceu em Paris. Naquele momento percebi que a mostra de livros que não era mais uma vontade só minha, tornou-se uma vontade coletiva. Com esse centenário, a gente achou que deveria comemorar. Então, pela primeira vez dei título a uma exposição. Chamei de “O Poeta Aviador”, porque além de Santos Dumont  eu coloquei Antoine de Saint-Exupéry, o autor de “O Pequeno Príncipe”, que também era piloto.

A fala de uma bibliotecária chamada Maria Aparecida, que trabalhou por pouco tempo na Biblioteca, foi muito marcante para mim, tenho muito apreço por ela. Chegou pra mim e disse: Estou aqui pensando numa frase do Saint-Exupéry que é “O essencial é invisível aos olhos” e vejo que essas suas exposições dão um projeto para o futuro. Por que não começa a registrar tudo o que você faz e, também, aproveita para um título para esse projeto? Quem sabe você reúne os colegas do setor para fazer uma votação". Nessa votação, surgiram vários nomes e o “Em Destaque'' foi o mais votado porque eu fazia exposições de livros destacando um tema por vez.

Outra coisa que aconteceu nessa exposição, foi ter recebido as estantes abertas para expor os livros. Até então, fazia exposições em vitrines fechadas, em que o usuário não poderia pegar no livro, nem levar para a mesa para ler e, para mim, isso não configurava o incentivo à leitura. Receber as vitrines abertas fez  uma grande diferença. Também  senti muita alegria de ver o meu trabalho reconhecido através da manifestação de leitores e colegas que estavam me incentivando a transformar aquela ação em um projeto. A partir daí, acabei colocando no papel e comecei a registrar tudo.

Como foi a experiência de ser contemplada pelo Prêmio Boas Práticas e Inovação em Bibliotecas Públicas, da Fundação Biblioteca Nacional no ano de 2014?

Quando eu fiz a inscrição no Prêmio de Boas Práticas eu nem imaginava que isso poderia acontecer.  A diretora da Biblioteca na época, que depois assumiu a diretoria do Sistema Estadual de Bibliotecas, viajava por todo Brasil para participar dos encontros nacionais da Biblioteca Nacional. Chegou um dia para mim e disse: “Maria Helena, vai sair um edital e se eu fosse você entrava com o seu projeto “Em Destaque”. Tenho viajado o Brasil todo e conhecido muitas Bibliotecas, mas eu não conheci, ainda, um projeto igual ao seu – que alia exposição de livros com atividades culturais. Acho que você tem muita possibilidade de ganhar!”

Então, acredito que tudo também depende do incentivo das pessoas, de chegarem até nós para falarem algo assim. Eu nem pensava em entrar com o meu projeto em algum edital pensando em ser premiada. Achava meu projeto tão simples, sabe? É tão legal quando alguém te motiva e você ouve o que ela tem para falar. Me disse, “Maria, você acha que é muito simples, mas precisa ver o alcance dele para as pessoas. Então se inscreva com o  seu projeto, pois você vai conseguir passar. Escreva de uma forma bem simples”, então escrevi de uma forma bem didática.

Uma coisa que me alegrou muito, foi o convite para fazer a apresentação desse projeto no 4° Encontro do Sistema Estadual de Bibliotecas Públicas Municipais de Minas Gerais para que ele fosse implementado nas bibliotecas do interior do estado. Este é um encontro que acontecia anualmente na biblioteca, mas neste ano está acontecendo on-line, por causa da pandemia. Em maio de 2014, apresentei o projeto “Em Destaque” no Teatro da bibliotecae estava lotado com representantes das bibliotecas de Minas Gerais. A maior parte do público era formado por pedagogos, bibliotecários, entre outras pessoas que são responsáveis por bibliotecas no interior de Minas Gerais.

No facebook tem uma foto minha apresentando o meu projeto para esse público. Lembro que mais duas bibliotecárias do interior apresentaram projetos interessantes que também foram premiados, naquele ano.

O que ficou mais forte para você, após 25 anos lutando pela inclusão sociocultural?

Trabalhar para inclusão sociocultural é uma ação transformadora, pois a pessoa que tem acesso à cultura possui maior autoestima, conhecimento do mundo que o cerca e maior entendimento do seu papel social. Durante esses 25 anos foi possível propor diversas ações que atendessem um número significativo de pessoas ávidas por cultura e conhecimento e que não dispunham de recursos para participar de eventos que não fossem gratuitos. Portanto, trabalhar com ações culturais no espaço democrático da Biblioteca possibilita criar formas concretas de inclusão sociocultural e interação no cotidiano da sua comunidade interna e externa, sendo também uma das mais dinâmicas formas de disseminar a informação agregando novos conhecimentos à comunidade em geral.

Para mim ficou muito forte o fato da Biblioteca ser um espaço repleto de vida e movimento, a capacidade que ela tem de se modernizar, recriar, educar e de estar diretamente envolvida em questões que estão relacionadas ao acesso e ao direito à informação, aprimoramento do conhecimento e de ampliação da cultura que podem transformar vida das pessoas.

Sobre a autora, Daniele Gomez:

Daniele Gomez Créditos Francielle Cota p&b

Escritora, multiartista, produtora cultural e arte-educadora. Bissexual. Feminista anticapitalista. Formada no Bacharelado em Estudos Literários pela FALE/UFMG (2019). Formação complementar em Filosofia na FAFICH/UFMG (2020). Nasceu em Belo Horizonte, mas cresceu na periferia de Santa Luzia. Iniciou sua trajetória como multiartista durante o Ensino Médio, com 16 anos, quando ganhou uma bolsa integral de estudos na escola Palas Atenas. Lá foi incentivada a criar pinturas, poemas, obras audiovisuais, montagem de peças de teatro e música e, sem dúvidas, essa oportunidade transformou os rumos de sua vida a direcionou para o campo cultural e educacional.

Ao longo de doze anos de caminhada, a escrita se tornou sua expressão artística predileta. Poesia e prosa se (con)fundem, muitas vezes, sendo contornadas por outras linguagens como a música e a performance. Enquanto autora-pesquisadora, Daniele investiga a produção de linguagem ética, política e poética.

Sobre a colagista, Amora Silva:

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Amora Silva é Artista Visual e Colagista de Belo Horizonte. Técnica em Cinema e Audiovisual pela Escola Livre de Cinema, atualmente graduanda de Design Gráfico na Escola de Design/UEMG. Suas áreas de interesse surgem no movimento das pessoas e conversas, na intenção de reproduzir o tato e a sensibilidade de forma imagética.