Política dos vagalumes: ou o aparecimento dos invisíveis

21/03/22
Publicado por Tomás German

Os desdobramentos do projeto, que deu vida ao livro Translado, são compartilhados nesta publicação com um texto íntimo, que mistura teoria, práticas observativas e escuta em casas onde moram travestis, que vivem da prostituação.

Não sei você, mas eu costumo me perder em pensamentos olhando para o céu. De manhã fico tentando identificar formatos nas nuvens, a noite procurando as estrelas. São poucas as que eu consigo enxergar, apesar de milhares estarem no céu. A claridade da cidade ofusca a luz dessas estrelas e minha miopia acrescenta mais dificuldade para eu percebê-las.

Este texto, entretanto, não é sobre estrelas, nem mesmo sobre o céu. Este texto é sobre aquelas que vivem nas sombras, são esquecidas e cujas reivindicações são quase inaudíveis, ou tidas como ruído. Calma, não precisa dar um scroll apressado para saber sobre o que vou falar, eu conto. Talvez você até já tenha reparado qual será o assunto. Mas antes de apresentá-lo, preciso mais um pouquinho de mistério. Promete ficar até o final? Em troca, reservo uma surpresa para as últimas linhas.

É que preciso agradecer a sua leitura. Não sou nenhuma estrela apagada no céu ou alguém que tem dificuldade de falar o que pensa. Muito pelo contrário, gozo de um relativo privilégio de participação, apagado somente pela minha timidez. Entretanto, já vivi momentos de tentarem “me prender no armário”, ceifarem minha subjetividade, e acredito que seja por isso que idealizei, junto com Afonso Scliar, Bárbara Macedo, Caio Paranhos e José Henrique Pires, o projeto Translado, em 2017.

Nesse projeto visitamos duas casas de travestis da Av. Pedro II de Belo Horizonte. Para quem não sabe, esta avenida é repleta de comércios, principalmente de peças automotivas, no dito “horário comercial”. Já a noite suas esquinas são ocupadas por travestis em busca de programa. No projeto, realizamos uma série de atividades em que foi possível registrar narrativas dessas mulheres, que foram transcritas para um livro.

O Translado foi tão importante para mim, que resolvi levá-lo para o mestrado em 2020 e, com isso, realizar mais um contato com essas casas. Devido a pandemia, precisei adaptar a metodologia, realizando entrevistas por telefone e (só após muita insistência delas mesmas e seguindo todos os protocolos sanitários) um grupo focal. Com base nesses dois encontros, compartilho reflexões acerca das vidas dessas mulheres.

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Se é que você me entende

“(...) [A]s pessoas olham a gente na esquina, nem imagina. “Pronto! Tá linda dando o cu e pronto.” Sabe? Tipo, ninguém entende, ou tenta entender, tudo… Antes, durante e depois do que a gente passa pra poder trabalhar na rua. Entendeu?” (Lívia)

Essa fala foi retirada do livro Translado e, em certa medida, revela o esforço das travestis não serem somente aquilo que lhes é atribuído. A vida delas é marcada por uma prostituição compulsória, uma vez que 90% das travestis são prostitutas, de acordo com a ANTRA (Associação Nacional de Travestis e Transexuais). Mas elas não são somente prostitutas.

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O filósofo franco-argelino Rancière chama de desidentificação o processo de perceber que se pode ser mais, de que existe excesso em nossa própria existência. Para o autor a política estaria justamente nesse excesso, ou seja, a política estaria na não conformação com o que é tido como natural, em perceber que existe um desencaixe.

Ele ilustra essa reflexão sobre política recorrendo às ideias de Platão. Quando Platão pensa no modelo ideal de polis, ele prevê uma função para cada membro. Escravos com o trabalho nas lavouras, soldados com a responsabilidade da segurança, mulheres com os afazeres domésticos e os cidadãos (ou donos de propriedades) com a criação de leis e tomadas de decisão.

Evidentemente, o bom funcionamento da polis (antigo modelo de cidade grega) exigia uma hierarquia que era conferida aos cidadãos. Artistas, poetas e até filósofos foram expulsos do modelo de polis platônico, porque eles poderiam atrapalhar/desordenar o bom funcionamento dela. O poder então é distribuído às pessoas (aos membros da polis) por meio de suas definições. Nesse sentido, o modelo de polis de Platão se baseia em um modelo oligárquico que não prevê dissensos ou questionamentos. Os dissensos e questionamentos seriam feitos justamente por aqueles que não eram contados na polis ou não concordavam com o local que restava para eles. Estaria justamente nesse dissenso a política.

A expulsão dos desordenadores da polis se dá de várias maneiras, principalmente simbólicas. Muitas vezes não entendemos aqueles que não seguem os padrões, sequer consideramos a forma como essas pessoas produzem sentido. Pela fala de Lívia, além de não entender, também não buscamos entender.

Vidas que importam

“Talvez, quando eu morava com eles [com meus pais] eu não conseguia seguir as regras, e como eles não viam as minhas... E a minha regra é viver. Então eu vivi.”
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Passamos todos os dias de nossas vidas tentando definir o que é ela. Buscamos seu significado e reivindicamos ele. Para grupos excluídos e/ou marginalizados, esse trabalho pode ser ainda mais árduo. Como podemos significar nossas vidas se não há quem nos entenda ou tenta nos entender?

A fala acima foi dita em uma entrevista por telefone, como não consegui autorização para identificar quem disse irei chamá-la de Iara, um nome fictício. Nesse momento da entrevista ela me contava de quando saiu de casa, expressando justamente a inconformidade dos familiares com sua orientação de gênero e o trabalho da prostituição.

Por vezes, a família oferece um impasse para pessoas LGBTQIA+. É inclusive comum escutar que se prefere a morte de um ente a ele ser LGBT. O próprio presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, já teve declarações a esse respeito, demonstrando sua intolerância e preconceito contra a população LGBTQIA+. A frase dita pelo presidente ecoa em outras casas, em outras famílias e também apareceu em uma das narrativas do livro Translado:

Com o meu pai foi outra coisa. Porque o único filho dele, chegar com 12 anos... Pra ele foi assim “ah, não vou aceitar, prefiro ser morto do que ter um filho gay”. Eu andei muito com garota na escola, só com garotinha. Minha mãe já sabia. Aí hoje ele batizou na igreja evangélica. Eu não tenho contato com ele, tem quase um ano que não conversamos. Liguei no aniversário dele, dei os parabéns, mas é “oi”, “tudo bem", "bença", “com deus”. Só isso. (Palloma)

Quando os pais de Iara não veem sua regra de vida, ou quando se prefere um filho morto a ele ser gay, busca-se uma certa eliminação dessas vidas, uma tentativa de apagá-las. Isso fica evidente principalmente em falas do tipo “não tenho preconceito mas…”, querendo dizer que você pode ser LGBTQIA+, mas você não pode parecer LGBTQIA+, o problema está no aparecimento.

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O livro Corpos em aliança de Butler discute sobre o direito a aparecer. Na rua, nas manifestações, os corpos lutam pelo seu direito ao aparecimento, uma luta pela existência, pela reivindicação a uma vida vivível. Minar o direito ao aparecimento, por sua vez, não é somente violar um direito, ou o direito a ter e reivindicar direitos, mas é minar a própria existência desses sujeitos, obrigados a existir conforme uma regra imposta.

Ao mesmo tempo, essas vidas não podem ser apagadas por completo. Sempre haverá pessoas LGBTQIA+, nas diversas classes sociais, nos diversos cantos do mundo, em diferentes culturas, chamados por diferentes nomes. Assim, a própria existência desses corpos é uma resistência, desafiando um padrão e um esforço de seu apagamento.

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A noite é que se sonha

Brenda: Eu acho que a gente, todo mundo, tem um dom de criar alguma coisa. Faz parte da gente, nossas loucuras e criações. Só que no seu caso, você faz uma arte, tem sua criação. Para você é uma coisa. Mas você criar para expor é outra. Então, uma pessoa para criar igual você, que cria, expõe, mostra seu trabalho, é sinal que você confia muito em você. E segundo a confiança de que as pessoas vão gostar daquilo que você faz. A mesma coisa com os nossos programas. A gente tem que confiar no taco da gente, porque aí vamos conseguir agradar aquelas pessoas que estão na rua. Quer dizer, quando você consegue agradar aquelas pessoas que estão na rua, que olham para você e enxergam você ali, é como se fosse um trabalho reconhecido. Entendeu? Porque nós começamos a fazer arte desde cedo. Pinta nossa cara...

José: A obra é você mesma, né?

Brenda: A obra é você mesma. Esculpindo você mesma.

Na introdução do livro História da arte de Gombrich, o autor já começa dizendo que “[u]ma coisa que realmente não existe é aquilo a que se dá o nome de Arte. Existem somente artistas” (GOMBRICH, 1988, p. 4). Para ele não haveria problema chamar tudo de arte e crítica o que chama de Arte com A maiúsculo, que seria aquelas produções esnobes e fetichizadas, geralmente consideradas “Arte” por um grupo elitista. 

Na última citação, Brenda chegou a uma conclusão parecida com a do historiador da arte. “Todos tem um dom da criação”, a criatividade estaria inerente a qualquer ser humano, “faz parte das nossas loucuras” como afirma ela. É exatamente por meio do processo criativo e artístico que aqueles que não são considerados criam.

Ah, eu tenho vontade de ter filho, mas de eu gerar o filho. Eu vi que agora, acho que foi na Inglaterra, tem um implante de útero agora que faz, né? Faz um implante de útero e aí quem é operada engravida. E quem não é, faz o implante e depois acho que coloca lá o negócio lá, né? E aí gera. Aí tem que cortar e tirar o embrião [o bebê], né? Aí tem esses dois jeitos, que eu vi passando, mas tá muito ainda, é... lento ainda, sabe? Os experimentos começou agora, sabe? Então, desse jeito pras pessoas trans ter filho. (Poliana em entrevista)

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Ao sonhar, ao se imaginar de outras formas, os sujeitos criticam a norma que impede que sejam quem gostariam que fossem, por simplesmente criar-se (nem que seja como personagem, como uma ficção), dentro de um universo que não opera com as mesmas normas. Rompem-se os limites de regras que impunham impossibilidades para gerar múltiplas possibilidades críticas àquela norma, de modo a revê-la, reinventá-la, subvertê-la criativamente.

Rancière reconhece aí a emancipação, na capacidade de inventar possibilidades que não estão disponíveis na ordem consensual e legítima. As travestis então se emancipam ao criar outros modos, modos específicos, de ser, existir e aparecer. Nossas experiências estão sempre baseadas no intervalo de ficção e realidade, daquilo que imaginamos e daquilo que existe, justamente por só experimentarmos o mundo por meio da linguagem. A linguagem é uma espécie de fundadora do mundo e sem o seu reordenamento não é possível gerar política.

Assim, gostaria de concluir reivindicando a política das vidas das travestis. E mesmo que esse dissenso (já que me refiro a política baseado em Rancière), gere conflitos, violências mortes, também existe espaços de imaginação de outras possibilidades, de reordenamento do que é convencional e simbólico. Com isso, esse texto também busca exaltar o reordenamento simbólico dessas vidas.

Como prometido, você que chegou até aqui (sei que este texto está desproporcional para uma publicação digital) possui uma surpresa. Algo simples, mas significativo para quem se interessa pelo assunto, como você que chegou até o final. Meu trabalho de mestrado renderá um livro e você terá informações em primeira mão sobre ele (lançamento e etc) preenchendo este formulário. O livro Translado é distribuído gratuitamente e você pode aproveitar esse formulário para solicitar um para você (só preciso que você arque com o frete).

Por fim, busco com este texto e com esses trabalhos impulsionar reflexões, debates e até sonhos. Só assim para criarmos outras possibilidades para vidas sejam vivíveis.

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Quem escreve:

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Publicitário, mestre em Comunicação Social pela UFMG, e produtor de conteúdo, Tomás German atua no contexto cultural e social desde a época da graduação. Criado no bairro Caiçara, desde pequeno transitava pela Av. Pedro II, onde buscou inspiração para o projeto Translado (LMIC 2015) e para seu mestrado.