+ PARDO – PAVOR – PÂNICO

10/03/22

O multiartista e mestre em letras, David Maurity, traz um ensaio acerca da palavra pardo e do imaginário criado para condicionar pessoas lidas socialmente neste espectro racial. O conteúdo é ilustrado pela artista visual Daiely Gonçalves.

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Este texto é uma tentativa.

E não há outra maneira de inicia-lo senão situando-me no tempo e no espaço. E ao realizar essa tarefa simples, digo-lhes que estou aqui nesse Brasil de 2021, que carrega consigo mais de 600 mil mortes de pessoas vítimas de um vírus, de um inimigo praticamente invisível com seus milésimos de milímetros, mas com uma capacidade destruidora inimaginável. Ainda nesse mesmo Brasil, há inimigos visíveis a olho nu, cruéis, fundamentalistas, conservadores e implicáveis - tal qual o COVID-19 - e que seguem, intratáveis, ocupando cargos de poder

É nesse espaço-tempo que várias narrativas de horror têm sido reeditadas. Entendam: É terrivelmente simbólico que a primeira vítima brasileira dessa pandemia tenha sido uma mulher, negra, empregada doméstica de uma família branca da elite carioca, cujo a patroa tinha acabado de regressar da Europa. É terrivelmente simbólico que, em meio a pandemia, várias comunidades indígenas tenham perdido os seus mais velhos, seus líderes, suas crianças, vítimas do descaso do Estado; que um adolescente, negro, tenha sido assassinado no quintal de sua casa e que o número de jovens negros assassinados pela polícia militar tenha aumentado; que essa crise sanitária tenha alvos certos, devido a sua cor e a classe social. 

A realidade aqui nessas terras vem se organizando em ciclos de sucessivos terrores com pequenos intervalos de um breve respiro de vida. Por isso, há de se ter muito cuidado para o Brasil não se tornar definitivamente uma literatura ruim. Sabemos que a pandemia marcará profundamente a todas nós socialmente e historicamente. E, nesse momento, portanto, é preciso que uma pergunta se torne parte de nosso cotidiano: quem vai escrever o Brasil a partir desse marco?   

A gente precisa se reorganizar. Essa é uma convocatória urgente.

Precisamos rever com apuro esse objeto-Brasil para conjugá-lo de maneira diferente, interrompendo de vez a narrativa de atrocidades. Precisamos reescrevê-lo a partir do povo, não de sua elite. Das trabalhadoras e trabalhadores, jamais de seus exploradores. Daquelas e daqueles que professam a liberdade, nunca o dogma.

É necessário que o movimento de reescrita da história aconteça das margens para esse centro instituído.

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A escrita, historicamente, é uma ferramenta legitimadora das experiências humanas, constitui-se como um espaço de poder, de disputa, e carrega consigo orientações ideológicas. Não há neutralidade nos processos de escrita e, por isso, os textos escritos estão carregados das crenças daquelas e daqueles que os escrevem. Muito da história que conhecemos está baseada em documentos, como: diários, relatos, cartas, livros, livros didáticos, dramaturgias. Portanto, a nossa identidade nacional é fruto também de uma leitura dirigida de arquivos oficiais.

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Este texto é uma tentativa.

A tentativa de um exercício de percepção poética da violência étnica por meio de um significante. Parte de um sujeito bixa, latino-americano, brasileiro, universitário e artista. Parte desse sujeito de “cor duvidosa”, do qual falava Mário de Andrade:

“Se qualquer de nós, Brasileiros, se zanga com alguém de cor duvidosa e quer insultá-lo, é freqüente chamar-lhe: - Negro! Eu mesmo já tive que suportar esse possível insulto em minhas lutas artísticas, mas parece que ele não foi lá muito convincente nem conseguiu me destruir, pois que vou passando bem, muito obrigado.” (A superstição da cor preta. In: Boletim Luso-Africano. Rio de Janeiro, dezembro de 1938.)

Escrever aqui é um começo. Servirá para tentar reordenar os anseios que a palavra PARDO causa. Há uma vontade de destituir, de esgotar a palavra PARDO de sua eficácia política enquanto um símbolo de democracia racial, de coexistência, enquanto essa metáfora de um não-lugar produtora de uma série de violências sistêmicas e estruturais.

Reúno-me aqui sob o mesmo desejo de quem acredita na derrubada de alguns monumentos e estátuas, para incitar uma “leitura incendiária” fora do eixo europeu – norte-americano de documentos, tratados, escritos históricos, livros, objetos artísticos em um apelo afetivo-crítico do que a palavra PARDO traz como identidade.

Precisamos encarar de frente essa realidade atroz e nos apegarmos ao exercício da imaginação para pensar possíveis saídas que ainda não existem para essa questão, a fim de produzir novas formas de agir sobre ela.

Esse texto é uma tentativa.

Talvez esse texto seja um chamamento para que, pessoas como eu, lidas socialmente como pardas, possamos revisitar o passado, como muitas pessoas já fazem em seus cotidianos, sejam elas estudiosas ou não, artistas ou não, a fim de que as nossas memórias se mantenham “vivas”, imbuídas de uma capacidade modificadora, junto a uma ética de ação no presente, numa expressão imperativa.

E para esse exercício, devemos lembrarmo-nos que a memória bem como a identidade, precisam ser corporificadas, porque o sujeito está inserido numa sociedade e é o responsável pela sua transmissão.

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O corpo é o nosso ponto de partida para interação com o mundo.

PARDO é um registro de linguagem. Uma invenção social. Uma definição metafórica dos brancos d’além-mar para povos originários daqui e para aquelas e aqueles que atravessaram, a contragosto, o atlântico para se tornarem mercadoria, sendo violentamente assujeitados.

PARDO é esse povo-nação mestiço que nos tornamos, fruto de relações não consentidas. PARDO vai dizer do tom avermelhado dos indígenas avistados por Pero Vaz de Caminha, dos filhos e filhas nascidos das relações, muitas vezes não consentidas, entre brancos e negros, brancos e indígenas. PARDO ainda pressupõe uma “melhoria” da raça, o embranquecimento de uma população, a ideia de eugenia, o ideal branco de miscigenação. 

A metáfora aqui precisa ser entendida como um jogo de presença e ausência, prazer e desprazer, figuras e figurações, o literal e o figurativo. Nesse retrato do sujeito PARDO é possível considerar prazer e presença dos resquícios coloniais para sua existência: a alienação que vivemos diante de um estado de violências ou a simples aceitação da condição de que não somos o alvo certo da opressão ou de uma condição explícita de subalternidade, mas que também jamais alcançaremos a requerida universalização do homem branco, europeu, transparente.

PARDO vai se construir na imagem da pessoa domesticada, na possibilidade de acesso a uma “normalidade”, na promessa de igualdade, no branqueamento da população brasileira, na disputa por uma subjetividade branca, num desejo de pertencimento e universalização. Aqui, o significante, “o corpo” (as letras e som que formam a palavra) e também o corpo-carne-território sobrevivem por meio de um significado, um conceito falacioso que serve às práticas coloniais que perduram na história.

“Pardo é papel”

PARDO corresponde a uma identidade racial que não existe em essência. “Pardo é papel”, já dizia o artista plástico Maxwell Alexandre. Mas ser PARDO se constitui historicamente por meio de um processo de caráter performativo que se concretiza através do tempo, por meio da materialidade da linguagem. Uma mentira contada muitas vezes, acaba tornando-se verdade.  

No sentido figurado, a palavra PARDO diz de algo com pouca intensidade e visibilidade. Nem é propriamente índio, nem propriamente negro, nem propriamente branco. Somos sujeitos que expõe uma noção de fronteira, um lugar de relação, de confrontos, cruzamentos e que acabam por revelar a condição simultânea de inclusão e exclusão de pessoas pretas e indígenas da nossa sociedade.

Questionar o significado ou significados dessa palavra-corpo é uma manobra para materializar os signos mostrando o caráter inventado, cultural e instável das palavras, a fim criar uma contra-narrativa da construção dessa identidade-nação ou dar subsídios para novos pensamentos acerca dessas questões. Desvelar essa ação simbólica é produzir um deslocamento nos nossos territórios para deformar o conjunto de verdades que nos compõem. Roer o osso do tempo, chupar a medula e mastigar as palavras.

Destruição também é uma forma de criação.

Nem é propriamente índio, nem propriamente negro, nem propriamente branco. É o que seguem nos dizendo. Fingiu-se uma cor, uma relação de benefícios. Por isso, é preciso desacreditar desse Brasil. Reelaborar a linguagem, perseguir os ruídos históricos, revitalizar o que foi considerado lixo pela memória que conhecemos, demarcar os imaginários para além da colonização. 

Sobre a ilustradora:

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Daiely Gonçalves

Daiely Gonçalves vive na cidade de Contagem (MG), é artista e professora. Seus trabalhos caminham entre o corpo, saberes tradicionais, território e memória. Mantém constante observação dos corpos que habitam as cidades e o cotidiano e as histórias que carregam esses corpos, para uma construção contra colonial, de corpos de cor, mantendo sempre com o olhar de afeto em suas representações. 

Sobre o autor:

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David Maurity

David Maurity é mestre em Literaturas Modernas e Contemporâneas pelo Programa de Pós Graduação em Letras: Estudos Literários, da UFMG. É ator, dramaturgo e diretor. Foi indicado a melhor ator coadjuvante do 6° Prêmio Copasa Sinparc, em 2020. É um dos fundadores da TODA DESEO, companhia de teatro que tem como pesquisa para os seus trabalhos questões relacionadas às identidades, multiplicidade e alteridade. Criada em 2013, a companhia nasceu na cidade de Belo Horizonte e já se apresentou em diversas cidades do país.