O lugar de mulher no rock belo-horizontino

19/01/22

Terra do Clube da Esquina, BH é cheia de gente visceral fazendo música. Mas, e onde ficam as mulheres na história do rock belo-horizontino?

Cena underground do rock garotista mineiro

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A história do rock’n’roll nasce do corpo e da performance de uma mulher preta, ainda antes dos anos 1950. Mas se o rock nasce progressista, como um estilo musical herdado do blues saído da classe trabalhadora e das performances catárticas dos cultos nos Estados Unidos (de maneira, digamos, um pouco mais subversiva), aqui no Brasil a história é outra. O estilo vindo de fora chegava por aqui através de uma elite musical-intelectual, branca, que podia estar antenada com os últimos lançamentos internacionais. 

Nosso primeiro registro legitimamente roqueiro vem, veja só, de uma diva do rádio: Nora Ney, que começava com seu rock around the clock nas boates de dança do Rio de Janeiro ao gravar a primeira música do estilo no Brasil. Não demorou para o gingado rockabilly contagiasse público e, naturalmente, a indústria fonográfica. Nomes já consagrados como Cauby Peixoto ou posteriormente Roberto e Erasmo Carlos acabaram carregando a alcunha do rock brasileiro em seus primórdios. Apesar de ter nascido de uma mulher – seja nos Estados Unidos, seja no Brasil – o rock acabaria por ter a presença feminina ofuscada nas cenas que viriam a se consolidar ao redor do país. Ou pelo menos, tentaram ofuscar. 

Provavelmente o fato de a mulher ter sido silenciada (ou, muitas vezes, apagada) da música popular nos seus processos de origem colaborou para essa realidade. Afinal, até o estilo musical tido como mais revolucionário era machista em sua formação. Para a mulher era tudo mais difícil: se dedicar a um instrumento, ter a música como profissão, fazer turnês, brilhar no palco sob olhares alheios. Mas tivemos exceções que logo se tornaram a resistência feminina na cena roqueira local, mulheres que atraiam olhares que iam de “curiosidade” (como se fossem seres de outro planeta em cima de um palco) à admiração, que (felizmente) logo virou inspiração para outras garotas.

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Mulheres na capital do metal

Nossa história com o rock e as mulheres nasce na prolífica cena de metal em Belo Horizonte, que viria a se tornar a capital nacional do estilo. Nos anos 1980, a Cogumelo Discos, localizada na Avenida Augusto de Lima, virou reduto de fãs do metal que iam semanalmente buscar pelos álbuns mais novos vindos de fora. Logo, esses jovens quiseram ter suas próprias bandas e, num processo quase natural, a Cogumelo virou também selo musical. Nossa cena deu ao mundo bandas como o Sepultura, Chakal e Overdose e virou reduto de nomes como João Gordo e outros metaleiros notáveis. Porém, em comparação à cena pujante de bandas de metal que despontaram aqui, as mulheres ainda estavam em minoria considerável.

“De fato, mulheres representando a cena local, infelizmente foram poucas. Posso afirmar que na Cogumelo havia espaço para elas, mas o mundo do rock, especialmente o segmento do heavy metal, sempre foi predominantemente masculino e, muitas vezes, machista.”

(Pat Pereira, Cogumelo Discos)

Entre essas representantes, temos nomes muito fortes, como relembra a própria Pat Pereira: é o caso da Placenta, nada menos que a primeira banda de metal brasileira formada apenas por mulheres. Composta por Vittória (guitarra, que antes integrava com sua irmã a banda Lady Satã), Marília (baixo, que futuramente iria tocar com o Megatrash), Ana Maria (guitarra), Paula (vocal) e Andréia (bateria), logo elas atraíram a admiração de fãs do metal feito aqui.

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Banda Placenta, foto de divulgação.

 

A força delas no palco era inevitável - logo, outras mulheres fãs de metal, encorajadas por um show da Placenta, decidiram que iam sim, empunhar uma guitarra e tocar Brasil afora.  Em entrevista ao site Rock Dissidente, Vitória relembra como era tocar com suas companheiras de banda em BH: “Ao mesmo tempo em que sentíamos um olhar repressor em cima da gente, existia outro olhar de curiosidade e expectativa por parte de todos. Afinal, até então, desconhecíamos qualquer outra banda totalmente feminina fazendo aquele tipo de som”.

Posteriormente, a cena metal também passou a contar com mais presenças/resistências femininas. Mulheres que tinham técnica vocal na ponta da língua, muito estudo e muita competência para falar de música. Um exemplo é Sylvia Klein, que junto a outras mulheres da cena de BH formou a Martelo das Feiticeiras. Após se dedicar ao rock’n’roll com suas bandas e ter participado do álbum Mirror my Mirror, da banda referência no trash, Witchhammer, Sylvia escolheu se enveredar pela música erudita, sua outra grande paixão. Logo participou de grandes trabalhos como o longa "La Serva Padrona” (1998), dirigido por Carla Camurati.

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Cenas híbridas do rock belo-horizontino

Mas não foi só de metal que viveu o underground de Belo Horizonte. Também nos anos 80, houve mais experimentações no movimento do rock underground. E bota movimento. O que as bandas independentes mais faziam era participar e emprestar instrumentos umas para os outras. A cidade pequena, capital com o clima de interior onde todo mundo se conhecia, era reduto de bandas colaborativas. Exemplo é a R.Mutt, nome forte da cena pós punk de BH.

Karla Xavier (voz, teclados e percussão) foi uma das integrantes fixas do R. Mutt. Uma boa notícia para quem quer ir atrás do som feito pela Karla e seus companheiros de banda é o Konkret Dance 1986-89, disco que só foi lançado três décadas depois e está disponível no Spotify desde janeiro deste ano - raridade, se pararmos para pensar que muitos desses sons feito por mulheres está precariamente disponível em faixas isoladas no YouTube.

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R.Mutt, foto de divulgação, de 1987.

Outro nome importante para o cenário pós punk da cidade é a Ida & os Voltas, com Ida Feldman no vocal e Alessandra Drummond, além dos integrantes do R.Mutt.

A união de forças e colaborações de mão cheia permeava por outras ramificações musicais. Um nome que une algumas dessas artistas é o de Marcus Viana. É o caso de Paula Santoro, que fazia backing vocals do Sagrado Coração da Terra e emprestou sua voz para a música tema da novela Ana Raio e Zé Trovão. Outro caminho que se cruzou com o de Vianna foi o de Junia Lambert, cantora, instrumentista e compositora, que teve a colaboração do músico em seu projeto solo que flerta entre o classic rock e o pop. Seu primeiro álbum, "Ar de Rock" (1995) emplacou duas músicas em trilha sonora de novela:  Limusine Grana Suja, na novela "Cara e Coroa" e Sem Roupa, na novela “Quem é Você”.

Já no final da década de 90, temos Anna Ly, que integrava bandas femininas como a sugestiva Boy Stuff e também a Máxima Crueldade. Tendo criado certa fama na cidade como baixista, Anna Ly era convidada por nomes fortes da cena para tocar, de Samuel Rosa a Jota Quest. Logo mostrou que iria ainda mais além, tocando seus projetos solo com igual maestria. As músicas do álbum Panapaná, lançado nos anos 2000, entraram nas rádios de Londres e Tóquio. O pop rock cheio de ritmo foi parar até nas passarelas de Paris, no desfile da estilista Christianne Marchand. Além de instrumentista, Anna Ly ainda deu aulas como educadora no Centro de Musicalização Infantil da UFMG.

Revolução no rock radiofônico (ou: Capetão 66.6 FM)

Mas a cantora mais lembrada da cena de rock em BH dessa época, que ganhou projeção nacional é, sem dúvidas, Fernanda Takai. Ela foi, inclusive, a única mulher a despontar nacionalmente nesta cena que entregou nomes que iam de Skank a Jota Quest. Fernanda começa a tocar violão desde cedo, o que logo a leva a frequentar lojas de discos e de instrumentos – foi neste contexto que ela conheceu John Ulhoa, então ex-integrante da Sexo Explícito, e a vontade de montar uma banda com ares mais pop veio à tona. O primeiro disco do Pato Fu é lançado também pelo prolífico selo da Cogumelo: Rotomusic de Liquidificapum e seu experimentalismo pop logo levaram Fernanda Takai a construir uma sólida carreira musical.

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Como sabemos, o machismo no rock é o machismo da vida. Apesar de muitas vezes as mulheres serem apagadas quando se tenta reconstruir uma memória da cena local, elas sempre estiveram presentes, produzindo, compondo, cantando e fazendo acontecer todo um movimento cultural na cidade. Felizmente, estamos em fase de mudança.

O presente e projeções futuras 

Se o hardcore -  que também teve uma cena forte por aqui nos anos 2000 - não teve tantas representantes femininas, o punk rock feminino e feminista de BH cumpre magistralmente essa missão. Uma das grandes referências sem dúvidas é a Bertha Lutz. O grupo hardcore feminista, riot grrrl, antiracista, e anti (cis) tema é formado por cinco mulheres que estão na ativa expressando suas visões de confronto com o patriarcado desde 2006. Bah Lutz, vocalista da banda, é ativista negra, zineira, compositora, e designer de produto por formação. Tem levantado nos últimos anos a pauta da militância feminista autônoma e LGBT. A importância da Bertha e sua representatividade é essencial para inspirar outras meninas.

Felizmente, a partir dos anos 2000 a cena de BH se tornou ainda mais diversa em expressões de gênero e identidade. A todo momento daqui saem e se formam novos grupos e ramificações de uma mesma cena, muitas tendo o feminismo como base no discurso e que reúnem artistas com vontade de construírem coletivamente um diálogo permanente e forte com o público por meio da arte.

Falando em punk feminista, em janeiro de 2019, anunciamos na Entre LP a gravação de "Shit & Blood”, o primeiro disco da Pata, no Medium da Entre LP. A Pata é belo-horizontina, constrói um subjetivo feminino com merda e sangue e subverte a ideia de que o corpo feminino deve ser escondido. Para Lúcia Vulcano (guitarra, voz), enaltecer a “pata de camelo” é uma forma de questionar a sociedade que exalta a exibição de corpos e volumes masculinos como símbolo de virilidade, mas trata as formas da mulher como vulgares. A banda surgiu com o lançamento do EP “Wild and Cabeluda”, em agosto de 2017, com grandes influências do grunge e do punk dos anos 90.

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Pata no show de lançamento "Shit & Blood" no Stonehenge Rock Bar. Foto: Priscila Santos.

A Miêta é uma banda amiga da Pata e também tocou no show de lançamento de "Shit & Blood". Por meio de um post despretensioso no Facebook e um encontro entre Célia Regina (guitarra), Marcela Lopes (baixo, vocais), Bruna Vilela (guitarra) e Luiz Ramos (bateria) a Miêta nasceu em 2017.

A banda belo-horizontina mergulhou em referências indies noventistas, ambientações shoegaze, guitarras altas e vocais que se cruzam para construir seu som com produções independentes dos quatro integrantes.

Entre várias mini-turnês, a Miêta participou do festival Bananada 2017 (Goiânia). Bruna Vilela, guitarrista da banda e integrante da Entre LP, contou no Medium sobre como foi estar uma semana na estrada com a Miêta, tocar no Festival Bananada, visitar três estados e ter oito ressacas musicais. Vem ler!

Temos, ainda, uma grande representante na capital do metal. Polly Terror é ex-vocalista das bandas Duna, Brisa e Chama. Atualmente, Polly explora sons mais experimentais, melancólicos e sombrios. Em 2019 lançou O EP "Special Fiend", é um disco com cinco músicas com clima sombrio, paisagens soturnas e melancólicas, que foi lançado pelos selos Geração Perdida (MG). 

Outra banda presente nas casas de shows da cidade é Ramona & The Red Vipers. Ela foi formada em 2013 misturando blues, jazz, ritmos regionais e atitude punk em canções próprias e cheias de personalidade. Ramona & The Red Vipers lançou seu primeiro álbum, "Escarlate", em 2019 e tem Andrea Cópio nos vocais e guitarra. Vale ir atrás - assim como todos os nomes que citamos aqui.

Para construir esta matéria, levantamos  uma investigação que foi das entrevistas ao trabalho de pesquisa de matérias em blogs e na imprensa da época. Não é difícil constatar que essa busca foi difícil, visto que não se dá tanto destaque à importância de mulheres precursoras no rock belo-horizontino. A experiência foi gratificante por nos permitir conhecer e exaltar algumas das precursoras, seja brilhando nos palcos ou fazendo a cena acontecer por meio de muito trabalho nos bastidores. 

Ao escolhermos dar luz à música feita por mulheres na cena underground de BH, resgatamos musicistas importantes e reconhecemos que tantas outras podem ter sido negligenciadas aqui. Esta matéria, portanto, é um experimento inicial, um trabalho de resgate de memória para registrar em uma revista cultural de BH algumas das mulheres que ajudaram a construir nossa forte cena de rock. Que, a partir desta matéria, possamos - tanto nós quanto você, leitora e leitor - buscar as demais mulheres que fizeram parte dessa história e exaltar seus trabalhos, pois é a partir delas que novas cenas feministas no rock belo-horizontino podem surgir, trazendo ainda mais representatividade a um estilo musical que nasceu da criatividade, da luta contra um sistema opressor e do espaço construído para minorias imprimirem a sua voz e lutarem por seus lugares de fala.

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Sobre as autoras:

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Damy Coelho é jornalista, bacharel em letras e mestre em comunicação. Em sua trajetória acadêmica, dedica-se a pesquisar a representatividade da mulher na música sertaneja e na música popular brasileira em geral. Publicou a pesquisa "O Femi do Feminejo: a presença da mulher na música sertaneja" e já trabalhou como jornalista de música em veículos como o Cifra Club, Palco MP3, Programa Alto-Falante (Rede Minas/TV Brasil) e Revista Ragga.

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Anna Bella Bernardes é jornalista, pós-graduada em marketing, pós-graduanda em gestão cultural, mineira do interior e há 7 anos paulistana de coração. Anna atualmente trabalha na comunicação do Museu da Pessoa, um museu virtual e colaborativo de histórias de vida.

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Francielle Cota é jornalista e correria em exercer funções diversas na área da Comunicação. Entusiasta da fotografia analógica, cultura pop e boa prosa.