Mercado novo?
07/09/22
Publicado por Bruna Bentes e Jéssica de Castro Santana
Nesta publicação, a jornalista Bruna Bentes busca contar a história do Mercado Novo por meio de 3 personagens e uma linha do tempo de 5 anos.
Inicialmente, eu pretendia fazer uma reportagem sobre o Mercado Novo, mas acho que não seria honesta. Reportagens são, antes de qualquer coisa, para informar. E meu objetivo aqui não é te informar nada exatamente. Quero te chamar a atenção para um lugar com muitas narrativas. Da minha parte, eu apenas refiz um trajeto meu e encontrei mais um monte de histórias.
Fui em uma comemoração de aniversário no Mercado Novo pouco antes da pandemia começar. Lembro que o motorista do carro de aplicativo que pedi me perguntou, mais de uma vez, se iria mesmo no Mercado Novo naquele horário. Comentou ainda que era um lugar muito escuro, muito feio. Não era a minha primeira ida lá, então só confirmei que o endereço estava certo sim.
Já neste ano, 2022, em uma outra ida ao Mercado, o motorista dessa vez me perguntou se eu tinha certeza da minha escolha de destino, porque ele já tinha passado por lá naquela noite e viu que estava com uma fila de dobrar a esquina.
Foram menos de cinco anos para o público de um espaço ser completamente transformado. E nesse caso, não foi uma mudança de público, houve um acréscimo de públicos. Cinco anos para a mudança de um motorista me indagar se iria mesmo naquele prédio escuro no meio da noite para depois o motorista perguntar se teria ânimo para enfrentar a fila.
O Mercado Novo
O Velho Mercado Novo, como é carinhosamente apelidado, só é velho porque está ali há muitos anos. Foi construído na década de 1960, com o objetivo de ser um complemento ao Mercado Central de BH, um dos principais cartões postais de Belo Horizonte. A estética é bem semelhante, e os endereços são muito próximos. Mas o mercado novo acabou virando uma construção, apenas. A construtora responsável faliu e a obra foi interrompida.
A partir daí, a ocupação do prédio de três andares e 9 mil metros quadrados da Avenida Olegário Maciel, no centro da capital, se fez e se transformou. O Mercado Novo se integra à paisagem do centro, mas é um centro comercial muito mais intenso do que sua construção simétrica aparenta. No primeiro andar, funciona uma distribuidora de alimentos. Certa vez, aliás, fiz uma reportagem, no espaço às três horas da manhã, quando funcionários já almoçavam – feijão tropeiro - porque, como me disse um senhor, pra ele o dia já estava grande naquele horário. Por volta de duas, três horas da manhã, já é possível fazer compras de hortaliças e sacolão.
Reinaldo
O segundo andar foi, por muito tempo, um mercado de gráficas. E aqui eu introduzo o primeiro, de três personagens, para ilustrar a história do Mercado Novo. Reinaldo Marques é de Porto Alegre e trabalha no Mercado há mais de 30. Ele veio da cidade dele porquê estava saindo de um divórcio e sua gráfica havia se incendiado recentemente e, por indicação de um amigo que estava morando na capital mineira, e por um apego atípico por parte de sulistas, Reinaldo se encantou pelo calor de Belo Horizonte.
Disse ele que chegou em uma sexta-feira do mês de agosto e o seu amigo lhe esperava, desesperado, por uma cerveja gelada. E foi aí que se apaixonou por BH. Me disse que tirou duas peças de roupa, porque veio vindo do frio gaúcho, onde se diz “quem não morre no agosto não morre mais” e, pelo que eu entendi, ele preferiu a versão de sextas-feiras com cerveja gelado no lugar de muito frio. Aqui, começou a trabalhar, conheceu sua esposa, Solange, hoje com quem divide os trabalhos de sua gráfica.
Ele me disse que o Mercado mudou. Que antes era visto como um lugar feio, nem um pouco convidativo. Hoje ele é ocupado por muito mais pessoas, mais tipos de estabelecimentos. E aqui, volto no que disse no começo dessa carta-reportagem, mas eu entrevistei Reinaldo por mera coincidência. A loja dele estava aberta, mas não tinha ninguém para me atender. Peguei um cartão em cima do balcão, liguei e ele me atendeu. São muitas gráficas no mercado novo, já procurei o lugar algumas vezes quando precisei desses serviços, aliás. Mas para esse texto, fui no acaso.
Ainda sobre Reinaldo, ele me disse que com a reforma trabalhista, os sindicatos perderam força e que antes eram seus principais clientes. Me disse também que investiu muito dinheiro, ultrapassando a casa de milhão, em máquinas. Hoje, sindicatos, na maioria, não tem recursos para sustentar um mercado de gráficas e muitas das máquinas que já valeram muito, ele teve que doar, porque não tinham mais utilidade. Ele chegou a ter 12 funcionários, hoje, somente ele e sua esposa trabalham na loja, fazendo todo tipo de material.
As gráficas sobreviveram. Se resgato memórias da minha infância, me lembro do Mercado Novo como o lugar de fazer convites, comprar embalagens. E lembro de ser um lugar escuro. Ainda é um pouco escuro, mas certamente com vários outros tipos de comércios.
Subindo de andares e de anos, em 2010 foi aberta a boate, Mercado das Borboletas, no terceiro e último andar da instalação. Talvez tenha sido por aquela época que o Mercado tenha se rejuvenescido. Na reportagem que fiz com os entregadores de hortaliças, o dono do restaurante que vendia tropeiro, me contou que era bem comum pessoas saírem da boate e irem comer no primeiro andar. Particularmente eu adoro esse fenômeno. A própria arquitetura do Mercado passa essa impressão de conter muitas tribos em um único espaço. Dia que fui lá atrás de entrevistas, aliás, eu parei no estacionamento pela primeira vez. E me confundi, duas vezes, no caminho para conseguir acessar as lojas. Percebi que ainda não tinha experimentado o compartimento de motoristas daquele prédio e não me atentei as regras. Do outro lado da grade, a dinâmica era outra.
Evaldo
E nesse dia, a primeira loja que fui foi a BH Molduras, que como o nome já diz, é uma loja de molduras, do seu Evaldo, o segundo personagem. Há 27 anos ele trabalha no mercado, na mesma loja, que é dele. Ele e o irmão, que ainda trabalha com ele, aprenderam a trabalhar com molduras com o irmão mais velho deles, que na época já fazia isso. Em poucas palavras ele conseguiu caber uns 20 anos de história. Me disse que ama o trabalho dele. Que já fez molduras para muitas pessoas e lugares importantes de BH. Que gosta muito dos rumos que o Mercado Novo tomou e está tomando, que foi bom para os negócios, que foi bom para o clima do espaço. Me disse que molduras tem fases e que ele tem que, em certas épocas, comprar mais material de uma ou de outra coisa, para atender a demanda. Seu Evaldo é casado há mais de 20 anos, tem uma filha de 21 que faz faculdade. Seu Evaldo figura, para mim, a estabilidade do mercado que por muito tempo se manteve meio igual.
Maíra
A terceira e última personagem, Maíra Sette, amarra essa história. Maíra é uma das sócias do Copa Cozinha, estabelecimento que eu escolhi para entrevistar, mas foi uma sequência de coincidências. Queria conversar com alguém dessa nova fase do Mercado. Que trabalhasse no segundo andar, o lugar que fica lotado nas noites e madrugadas dos finais de semana. Tentei alguns, de forma difusa. Com contato de algum funcionário que conhecia, com o telefone que encontrei na internet ou no próprio letreiro. Mas o primeiro que tentei foi a cervejaria Vilela, por ser o lugar que mais frequentava, antes da pandemia. Depois, tentei a Copa, porque realmente gostava de lá e foi até fácil falar com a Maíra. Ela, coincidentemente, é casada com o Rafael, um dos donos da cervejaria que tinha tentado contatar e que, vim a saber, foi o primeiro estabelecimento montado ali, no cantinho do segundo andar do Mercado Novo. A Maíra foi a terceira lojista. Ela me disse que, no começo, ela tinha que limpar os corredores quando chegava cedo, para colocar os pães de queijo para assar. Ou ela, ou as sócias, terem de acordar o porteiro do Mercado para abrirem a Cozinha.
A Copa ganhou uma segunda sede, mas como Maíra me disse, ainda faz todo o sentido estar no Mercado Novo. Os mais de 200 estabelecimentos em funcionamento, ainda, preservam uma autenticidade, não há grandes marcas, é um shopping do artesanal, do original. E, claro, tomou grandes proporções e mudou. O público é outro a cada dia da semana, o terceiro andar passa a ser ocupado por mais estabelecimentos e clientes.
Quando disse que o mercado só é velho em idade é porque surpreende que em 5 anos, com uma pandemia de quebra aí no meio, um prédio com mais de 300 lojas e mais de 50 anos de história conseguiu se recontar de tantas formas.
Eu queria contar a história do Mercado por meio das histórias de lojistas e nas histórias que ouvi, percebi que já tinha casos para muitas páginas e coincidências inesperadas. Achei que teria um contraste mais gritante nos relatos dos habitantes do Velho Mercado Novo com os habitantes do Novo Mercado Novo, mas é um espaço curiosamente coeso.
Quem escreve:
Bruna Bentes
Bruna é jornalista. Trabalha hoje como trainee na rádio CBN. Com alguma experiência em marketing, assessoria e trabalho em combate à violência de gênero, a meta segue sendo aprender a ver e a ouvir.
Quem ilustra:
Jéssica de Castro Santana
Jessica é urbanista e arquiteta formada pela UFMG, com um olhar atento às periferias e aos saberes tradicionais e cria do Barreiro, em BH. Faz parte da coordenação nacional do Movimento de Mulheres Olga Benario, é uma das coordenadoras da Casa de Referência da Mulher Tina Martins (BH/MG), compõe a equipe de arquitetas do projeto Arquitetura na Periferia e trabalha o fortalecimento de cidades do interior com jovens a partir da valorização da cultura e patrimônio local.
Acredita em uma prática profissional que esteja alinhada à luta pela reforma urbana e o direto pleno à cidade, somada às pautas antirracistas, anticapacitistas, contra a cultura do estupro e o machismo e anticapitalista. Desenvolve essas pautas em um trabalho paralelo de ilustração e projeto gráfico chamado "A cidade em que hábito".