(Des)canso

16/08/22
Publicado por Rebeca Amaral

(Des)canso é um autorrelato da trajetória acadêmica da artista e do processo criativo da artista, que explora, através da sua perspectiva de mulher negra, a (re)visitação da memória em seus trabalhos.

Autorretrato final

Eu nasci em Belo Horizonte em 1998, e sou graduanda em Artes Visuais pela Escola de Belas Artes da UFMG. Em 2020, fui bolsista de iniciação científica pelo departamento de Artes Plásticas, sob a orientação da professora Rachel Cecília de Oliveira, atuando na pesquisa intitulada "A Equivocidade da Crítica: apontamentos sobre a relação entre crítica e arte na atualidade" e fui premiada com Relevância Acadêmica na primeira etapa da XXIX Semana de Iniciação Científica. Através dessa experiência eu tive a oportunidade de ter contato com a área de pesquisa científica e de crítica de arte de uma maneira mais profunda, aprendendo a pensar sob outros pontos de vista e a validar histórias outras.

Atualmente, eu sou bolsista de extensão do Centro Cultural UFMG, sob orientação do Prof. Fabrício José Fernandino, atuando no programa “Visualidades e Memória”.

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Em minha pesquisa artística, estou desenvolvendo trabalhos a partir de pintura, desenho, colagem, bordado e fotografia que dialogam com o modo como a imagem da mulher negra é representada devido ao histórico colonial brasileiro. Por meio da (re)visitação das memórias de minha infância, eu busco elementos que foram perdidos, que ficaram no tempo, numa tentativa de reconstrução desse passado. Nem sempre encontro essas memórias, muitas vezes só encontro vultos e por vezes esqueço, numa tentativa empenhosa de lembrar. Então, com os vultos que restam, eu tento provocar um deslocamento do corpo negro levantando questões sobre silenciamento, afeto e medo, tencionando questões sobre descanso também.

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Eu decidi começar a (re)visitar minha infância durante o ano de 2020. Fiz Fundamentos do Ensino da Arte I e II, duas disciplinas da licenciatura que são ministradas pelas professoras Patrícia de Paula e Rosvita Kolb. Uma das propostas das disciplinas era montar um memorial de lembranças da infância, e entre os objetivos estava a possibilidade de identificar no sistema educacional elementos que nos ajudam a pensar novas formas de se educar hoje. E inevitavelmente, eu tive muito contato com a Rebeca criança.

Comecei a gostar desse exercício de voltar ao passado, trazê-lo para o presente, trazer a minha criança para o agora e trabalhar junto dela. Gostei e tenho gostado de fazer essa reviravolta no tempo, de dar à minha criança uma existência que talvez, lá atrás não tenha sido possível. Em “Segredos do Coração: a escola como espaço para o olhar sensível”, Rosvita fala de um passado que permite ser reconstruído sendo articulado com o presente.

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“O que é o vivido? O que é o passado? No dia a dia das escolas, é comum difundir a ideia de que o passado existe para preparar o futuro. Contudo, Benjamim (1994), em sua análise da história, fala de um passado vivo, passível de ser refeito e no qual o sujeito tem um papel fundamental. É possível refazer o passado, interligando-o com o presente”, ela diz.

Dessa forma, acredito que eu consiga reconstruir esse passado (re)visitando-o hoje e trazendo a Rebeca criança para brincar junto de mim. Então eu escrevo sobre essas memórias. Às vezes elas chegam no ato da pintura, outras vezes durante os devaneios de cada dia, e peço para a minha irmã posar para mim. Faço desenhos rápidos dessas poses e vou para a pintura com eles. Então é como se tudo fosse memória. Durante essas (re)visitações percebi que minha voz é um motor de transformação presente em meu trabalho, sendo ela um elemento que deixa transparecer a internacionalização das violências coloniais. Gosto da ideia de gravar os meus poemas, dando corpo a essa existência em palavras, explorando minha voz como potência.

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Minhas referências têm sido a própria Rosvita Kolb, Rosana Paulino com seus trabalhos sobre silenciamento, Ponciá Vicêncio de Conceição Evaristo, entre outras. Ponciá têm me acompanhado de forma bastante afetuosa e entrelaçada de modo que por vezes eu me confundo com ela. Esse medo, devaneios, divagações fazem parte da minha realidade e eu encontrei em sua história uma maneira de trabalhar isso na pintura. O Ìtan dos Ibejis também tem sido uma grande referência, uma vez que são orixás-criança da alegria, personificação da dualidade, dialogando com minhas memórias de criança e meu trabalho na pintura.

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A série (Des)canso nasceu e foi se desenvolvendo no centro dessa (re)visitação. São mulheres pensativas, ora lendo, ora descansando, ora buscando um sentido para isso tudo que é a vida, como Ponciá. Elas são grandes e, apesar de estarem só em telas que foram reservadas especialmente para cada uma delas, estão juntas, como numa comunidade, a partir do momento em que nascem juntas.

Meu processo em pintura se dá pela construção de várias telas ao mesmo tempo, então quando estou formando a pele de uma, a pele da outra também está se formando, visto que preciso de tempo para olhá-las, para conhece-las, para ouvi-las, percebendo para onde querem me levar.

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Existe um caos que se dá pelos escorridos, pelo inacabamento presente em algumas partes, pela contraposição de tons quentes e frios, pelas texturas e geometrias, que me leva para o caos que é a vida, um caos que talvez Ponciá anseie, um caos que desmantele as estruturas sociais.

Porque essas mulheres estão imersas em seus próprios universos de busca por conhecimento, há uma sede por uma busca desse conhecimento que nos foi tirado.

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