Aluga-se Garagem

17/12/21
Publicado por Jomaka e Madu Machado

Um conto sobre Mabel, que transita para Cartilu e vive a busca por um sonho: alugar uma garagem.

Carlitu mal completou 29 anos e já sofre por antecipação o que chamam de “crise dos trinta”. Depois de tudo o que passou para finalmente se enxergar, ele deixou pra trás uma família e  correu atrás de outra. Mudou de nome e isso era só o começo da nova vida. Na garagem alugada,  uma fábrica de tortas, um clube, um cinema, uma paixão avassaladora e a descoberta das  infinitas possibilidades de ser do seu próprio corpo.

Tudo começa quando, aos nove anos, Mabel viaja para praia com seu pai e sua madrasta.  

Muita expectativa, afinal a viagem tinha tudo para dar certo. Só não deu certo porque  faltou ter... um pouquinho de tudo.

Naquela época ele se sentia uma criança patética com aquele maiô, mas mesmo assim se  divertia e danava a colocar sorrisos na cara das pessoas (- e por que mesmo elas estão  rindo?)

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Daqui, do lado de fora, não vejo graça nenhuma. Constantemente penso: Como assim!? 

Por exemplo: lá estava Mabel, o super dedicado na escola, tentando ali ser o melhor, as melhores notas, o melhor, vamos, super, super, super! 

Ele, uma pena, até o chamam de coitado... de super não tinha nada.  

Acordava sem querer com o despertador, e depois com a mãe chamando, a mãe chama outra vez, o despertador, o horário da escola... A mãe diz que Mabel vai atrasar... Eu daqui queria ir lá e contar tudo, mas só observo. Só mais cinco minutinhos. Pronto! Uma caneca de água na cara, um pulo da cama... 

Na escola, inimagináveis situações, assim como tantas outras e tantos outros lugares possíveis pra se lembrar, criar...  

Eu disse que tudo começa quando, aos nove anos, Mabel viaja para praia com seu pai e sua madrasta... 

Na viagem, Mabel encontra uma carta na carteira de seu pai. Estamos em 2031 e a data ali é 2071. Como é possível! Reconhece sua letra... 

Ele entende que precisa se livrar daquela dupla, e precisa mudar de nome.

1. Mabel 

Mabel sentou-se pra escrever a carta, como quem sabia o que estava fazendo. Com uma certeza realmente plena, embora haja o pleonasmo, Mabel não tinha dúvidas de que só bastava sentar-se ali e escrever.

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O dilema desta página da história de Mabel: o pai.

Mabel no dicionário:

Sexo: menina.

Origem: inglês, latim.

Significado: abreviação do nome inglês medieval Amabel, do latim amabilis ("adorável")

Curiosidades: sua xará, Mabel Normand (1892-1930), atriz estado-unidense, é considerada a comediante  mais popular do cinema mudo. Acredita-se que tenha sido a primeira pessoa a lançar uma torta na cara de outra numa cena, inaugurando o gênero "pastelão".

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2. Carlitu 

Outros dilemas de Mabel se misturam com o dilema de Carlitu:  

porque Carlitu é um empreendedor de tortas que, por causa de Mabel, de um dia para o  outro já não consegue mais vender tortas para outras pessoas. 

No dicionário... 

A Palavra Carlitu possui 7 Letras 

A Palavra Carlitu possui 3 vogais - a i u

A Palavra Carlitu possui 4 consoantes - c r l t 

A Palavra Carlitu ao contrário: utilrac 

Sexo: não reconhecido no cartório

Origem: desconhecida 

Significado - segundo Carlitu, o próprio: aquele que não dorme no ponto 

Curiosidades: Carlitu é primo distante do Carlitos de Londres. Carlitos, sim, o Carlitos... Do Chaplin, sim. Esse mesmo.

3. Narrador 

Eu vou começar pela garagem.

A GARAGEM

Carlitu era aquele tipo de cara trans que você olha e pensa: - hmm, que delícia! 

Apesar de sua pobre cara de não saber pra onde ir, ontem foi seu aniversário de 29 anos  e ele finalmente conseguiu ter coragem de tentar a vida sozinhe. Porque se tinha um lugar  que ele queria ir era a tal da sonhada garagem.

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Arrumou as malinhas, já pegou todo o dinheiro que guardou durante a infância e a  adolescência, desde sempre focado nesse primeiro objetivo: alugar uma garagem. É o  primeiro sonho que se lembra ter tido. Teimoso e insistente, aquilo não saiu da mente e ele realmente foi... até conseguir as chaves.  

É óbvio que Carlitu também levava em conta o fato de ser inadmissível, depois de tantos  anos colecionando máscaras falsas de si mesmo e notas e moedas de troco, chegar aos 30  anos sem conseguir esse feito! Se não fosse agora, pior seria na chamada “crise dos 30”... 

Dito isso, agora sim!  

Carlitu era aquele tipo de cara trans que você olha e pensa:  

- hmm, que delícia! 

Exatamente porque foi nessa garagem que ele abriu sua loja de tortas. Deliciosas tortas! Eventos de todo tipo!  

Ah, mas se aquela garagem tivesse voz própria...  

Carlitu todo dia, domingo a domingo, levantava às 5h e colocava o carro pra fora. Hora  de trabalhar, religiosamente. 

Dentro do carro, quando saía para fazer compras, escutava rock, e dizia consigo mesmo: ROCK’N ROLL, BRASIL! Se vocês algum dia ouvirem Carlitu falando isso, significa que ele está em êxtase, muita animação, uma completa euforia. 

Tinha dia que se animava tanto que, além de vender as tais das tortas, estacionava o carrinho de pipocas bem na entrada da garagem-casa-loja de tortas e saía dando pipoca pra quem quisesse.  

Numa outra ocasião inventou tanta moda que instalou um projetor no muro, abriu o telão  e começou a exibir o primo distante, Carlitos, em Tempos Modernos, enquanto colocava  frenético as pipocas no saquinho.  

De repente, a garagem de Carlitu era, aos finais de semana, o conhecido Carlitu Cinema  Clube, ou o CCC da orla.  

O CCC era o lugar em que as cadeiras do cinema são as piscininhas de plástico, tem uma  duchinha básica, passa filme na parede, rodam saquinhos de pipoca, suquinhos de limão,  chá verde e, -óbvio: tortas!  

Mas as tortas só de segunda a sexta, ou no caso de você ter a sorte de ter sobrado alguma  pra contar história... 

Sim, as tortas contavam histórias.  

E Carlitu as apelidou carinhosamente de palavras-tortas. 

Carlitu é exagerado, extravagante, rebelde de causa nobre, um quase trintão, o guardião  do segredo revelado somente no final, um fazedor de palavras-tortas na garagem e nas  ideias, um tipo galeto de frango, branco, cabelos castanhos, olhos castanhos, unhas  curtíssimas, há mais ou menos 3 anos em uso de testosterona, na barba uma penugem de respeito, com direito a um bocado de costeleta de ambos os lados.  

Ah, recém operado! Sim, ele quis fazer uma mastec.

E mais: para Carlitu meia palavra basta pra uma invenção na cabeça.  

E ainda que euzinhe aqui, este eu que vos fala e, quem sabe vocêzinhe aí também, este tu que me escuta, compreendamos que não é a respeito de clichês e\ou plágios, devo admitir que torço para Carlitu, eu sou seu maior fã, não tenham dúvidas.  

Como é bom poder narrar essa história…  

Afinal, devo admitir: toda nova história é uma história nova e isso aqui agora aconteceu diferente! 

Em algum tempo as crianças começaram a se interessar pelas embalagens das tortas... - Como assim! Pelas embalagens das tortas!? 

- Sim, pelas embalagens.... Você já observou algum gatinho?

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Nossa opinião:

Quem vos escreve confessa já ter desejado morar em uma garagem em algum momento da vida. O conto de Jomaka, ilustrado por Madu, cria uma proximidade - quase uma intimidade - com Carlitu, seus fazeres e apropriação do espaço. De forma cronológica, Mabel, Carlitu e narrador nos contam sobre esta transição que só quem viveu e vive saberá.

Sobre os artistas:

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Jomaka

30 anos. Vive. Menine. Intersexo. Transviado. Artista mineiro-escritor-produtor-ativista-arte-educador-poeta-marginal-antimanicomial. Integrante do coletivo Academia TransLiterária e do Movimento Autônomo T BH. Autor do livro ''Generalidades ou Passarinho Loque Esse'' - editora Impressões de Minas - coleção Ouvido Falante.

Madu Machado

Madu Machado

Artista, travesti, desenhista, atriz, performer, chargista, escritora, tatuadora, estudante, professora, palhaça e nas horas vagas "veterinária-astronauta e mentirosa-prolixa". Com formação técnica em Artes Visuais e graduanda em licenciatura em teatro pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professora no curso e projeto de extensão da UFMG, Teatre: Processos Criativos em Artes Cênicas, curso livre de teatro, multimodal, com foco em sujeites trans/travestis e em estéticas que de alguma forma se desviem da cisheteronormatividade. Desde 2018 trabalha como artista de rua como palhaça e desenhista e, atualmente, trabalha como artista, travesti, desenhista, atriz.