Elegância Retorcida

07/02/22

Performance e literatura. Luz, cor e som. Neste conto escrito por Brisa Alkimin, a protagonista vive o dilema de sua imagem e de não pertencer a ela.

Ela passou a vida inteira acreditando que o espelho mentia para ela. Dos quinze aos dezesseis, os virava contra a parede, ou os cobria com um tecido de veludo.

Como poderia um mero espelho mentir o seu próprio reflexo?

Os espelhos eram terríveis, implacáveis, desonestos. Refletiam auto ódio, auto escrutínio, auto mutilação, e por fim, desejo de vida.

Tudo correndo através das córneas, deslizando pelas retinas, formando uma imagem invertida em sua cabeça. Lágrimas escorriam como ribeirões pelos seus olhos. Sobrava parte, faltava parte.

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Dos quinze aos dezesseis, isso entre os anos de 2011 e 2012, a internet ainda era algo remoto na rotina desta garota. Os computadores demoraram a chegar nas casas da favela, e o que ela tinha era uma lan house/mercadinho próximo a sua casa. Ela se levantava cedinho e subia o morro até o tal lugar, pois, de manhã cedo, a rua era pouco movimentada. Se tinha movimento, ela era um evento. O pior dos eventos.

Ela pesquisava, na frente daquele computador branco, mas não sabia o que era, não sabia o que tinha. Era doença? Era desvio de imagem? Tinha um CID? Ela sentia como se fosse um erro de deus.

Ela ainda não havia escolhido um nome para si, ou melhor, para aquele ser que vivia adormecido dentro dela. Às vezes, se referia a partir de nomes de mulheres fortes que habitavam seu imaginário: Maysa, Iansã, Naomi, Luísa.

Chegou finalmente em Luísa, nome de sua bisavó.

“Era uma preta metida, muito nariz em pé. Pobre, mas ainda assim, não baixava aquele nariz por nada. Gostava de usar estolas e perucas que não tinha condições de pagar. Mas incrivelmente, a negra ficava fascinante com elas. Uma verdadeira rainha do morro.” Os relatos eram de sua avó, filha de Luísa, a quem nada havia herdado o jeito de Diva soberba de sua mãe.

Daquele momento em diante, se referia a si mesma como Luísa. 

Luísa encontrou um nome, mas os espelhos continuavam virados contra a parede. Os espelhos continuavam sendo cobertos por aquele tecido pesado de veludo.

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Luísa se escondia em um quarto grande, com pouca estrutura. Mas ali era seu universo. Enfiada em uma pilha de discos dos anos 80, camuflada entre dezenas de revistas antigas, apaixonada pelo som do rádio e a tela da MTV. Por instantes, Luísa se esquecia, imaginava que aquele quarto precário fazia parte de um palacete vitoriano. Dançava e rodava naquele chão, num caminho de valsa solitária.

Luísa tinha a si mesma. Mas quem era ela? Que segredos ela guardava? Que lembranças aquele corpo carregava? Quais eram aqueles desejos de vida?

Se pegava lembrando de sua infância, e que cruel lembrança.

Mas lembrou que desejava ser atriz, por causa das telenovelas. Atriz, não ator.

Lembrou que brincava de “O Clone” com seu melhor amiguinho, Áureo. Ele era o Lucas, ela era a Jade. Lembrou das histórias que não contava aos seus psicólogos com medo de ser separada da mãe. Naquela época, existia uma crença que meninos que cresciam com mulheres se tornavam “afeminados”. Ir morar com o pai, aquele homem tão distante que lhe despertava medo, lhe causava uma tristeza inerente. Preferia mentir para ficar ao lado da mãe. Isso na segunda infância.

Lembrou das vezes que ficava sozinha em casa, quando essa mãe saía à noite para estudar. Era o momento. Vestia as roupas daquela mulher, calçava os seus sapatos e sentia-se feliz!

Lembrou-se também que quando via novelas de época, tentava imitar os figurinos das atrizes. Colocava várias cobertas em volta de sua cintura, as prendia com cadarços e pregadores e no final, as cobria com uma colcha branca floral, tentando imitar um vestido com uma crinolina, popular no século XVIII. Lembrou-se das perucas que fazia com as linhas de costura da mãe. Lembrou-se da sensação de passar um batom pela primeira vez. Uma mistura de alegria e culpa. Tudo isso lhe causava alegria e culpa.

Mas a dúvida de Luísa permanecia. O que ela era afinal? Qual era a resposta? Por que se escondia tanto? Se isolava tanto? Se reprimia tanto? Se machucava e se feria tanto? Por quê?

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Às vezes, ela desejava morrer e, de fato, tentou. Mas seria inútil morrer e não saber da resposta, afinal, - “qual é o meu problema? Eu tenho um problema? O que tem de errado comigo?”.

Tinha a sensação de estar adormecida, como se o personagem reinasse por cima da artista, que já não suportava mais o peso do figurino.

Pois é, o figurino caiu. Caiu e só assim Luísa entendeu a angústia de mais de duas décadas. Era uma mulher! Nada diferente do que uma mulher! MULHER. Mulher. 

Se permitiu ser o que tentaram abafar e sufocar. Mulher. Haviam cometido um erro médico? Seria possível? Mulher. Mulher trans. Mulher. Nada mais que mulher.

Luísa virou os espelhos. Pra dentro de si. Luísa voltou para si. Luísa soube que finalmente se sentiria viva, que respirava, e que não estava mais adormecida.

Aquela menina, adormecida dentro dela, cresceu e precisou rasgar sua própria pele para que ela saísse daquele lugar escuro, sem vida, sem cor.

Por isso a elegância de Luísa era retorcida. Foi feita com várias emendas de peles, sonhos, frustrações, dores e sangue. Luísa carrega uma elegância retorcida.

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Os artistas:

Brisa-Alkimin

Brisa Alkimin

Brisa escreve sobre o limbo do desejo e da melancolia. Narra o erotismo e o afeto, bem como a ausência destes elementos e sensações. Na performance, testa seus próprios limites numa linha tênue entre sentimento e existência. Natural de Belo Horizonte, é também compositora, arte educadora e estudante de moda e figurino cênico. Partindo da decolonialidade, Brisa pesquisa a influência de corpos negros e latinos na história da indumentária do século XX.

Vinicius-Fockiss

Vinícius Fockiss

Vinícius Fockiss, 23 anos. Homem negro, gay, artista e cineasta nascido em Belo Horizonte. Dedicado às artes em geral, transita entre as Artes Plásticas, onde realizou performances e instalações, e as Artes Cênicas, onde foi integrante da Cia Palavra Viva. Diretor e roteirista do curta-metragem “DOIS”, é cineasta graduando no Centro Universitário Una, onde dedica seu olhar ao cinema de descentralização, democratização, coletividade e inclusão.