1000 planos: entendendo a animação
15/03/22
Publicado por Gabrielle Curi
A ilustradora e animadora, Gabrielle Curi, compartilha os processos da animação do curta "1000 Planos", de forma bem didática.
Meu nome é Gabrielle Curi, sou ilustradora e animadora, bacharel em Cinema de Animação e Artes Digitais pela UFMG. Durante a minha formação, produzi a animação do projeto Horizonte, juntamente com meus colegas e amigos Ane e Samir, que acabou se tornando o clipe de uma faixa do artista local e meu amigo Dedé Santaklaus: 1000 Planos 100 Din, lançado dia 25 de dezembro de 2020. Hoje vou mostrar as etapas da produção dessa animação 2D digital pose a pose, desde a concepção da ideia até a finalização. Para quem tem curiosidade de aprender a animar, ressalto que há várias maneiras de se fazer animação, hoje vou focar exclusivamente no processo desse clipe, mas ao final deixarei algumas referências bibliográficas para quem quiser entender mais sobre outras formas de animar.
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Comecemos do começo. A ideia.
Há alguns anos já venho estudando sobre a crise climática e também acompanhando expectativas para o futuro do planeta, tanto científicas como ficcionais. Com esse tema em mente, tive a ideia de fazer uma animação que retratasse um futuro distópico aqui mesmo, em Belo Horizonte. Então, um belo dia, em um momento de ócio total (uma ótima prática para quem trabalha com criatividade, inclusive), a história do curta veio na minha cabeça, anotei tudo e no mesmo dia escrevi o argumento, isso é, um documento escrito em forma de prosa (diferente do roteiro), que relata todos os acontecimentos que vão se passar no filme. Mandei para Ane, que curtiu e topou realizar comigo essa animação como projeto de ateliê, para a faculdade. Tínhamos três semestres para concluir e em seguida chamamos Samir, outro amigo, que também aceitou encarar esse projeto.
Com o argumento em mãos, além de várias conversas e brainstorms, o próximo passo foi o storyboard, basicamente um roteiro ilustrado, que define a sequência de cenas com seus elementos e enquadramentos.
Páginas do primeiro esboço do storyboard, desenhado por Ane.
Nesse momento, também definimos os sons que queríamos em cada cena. O filme não tem diálogos, e como seria um videoclipe, escolhemos apenas algumas situações específicas para incluir sons ambientes. Escolhemos colocar o som do carro, porque é um momento de clímax no roteiro, e também do pano voando ao céu antes de cobrir a personagem. Para este último, escolhemos um som de lâmina, para ficar mais caricato e cinematográfico.
É muito importante definir a trilha sonora e sonoplastia do filme logo no início, nessa etapa de concepção do roteiro ou storyboard, pois é nesse momento que se estabelece todo o ritmo da narrativa. Para uma produção de baixo orçamento, é possível achar bancos de dados na internet com sons gratuitos para download. Depois é só usar algum programa de edição de som, ou até algum de edição de vídeo que seja mais completo, para equalizar tudo certinho ou acrescentar efeitos.
Com o storyboard pronto, trilha sonora e sonoplastia definidos, o próximo passo é fechar o conceito da identidade visual do projeto. Isto é, o design de personagem, o cenário, os objetos, as cores, formas, etc. Nessa etapa, há dois fatores bem importantes na tomada dessas decisões: as referências e os esboços. Para definir esse conceito visual, ficamos algumas semanas pesquisando diversas referências em clipes, filmes e todo tipo de conteúdo relacionado a temática do nosso clipe.
Referências visuais para o personagem
Após a compilação e análise dessas referências, produzimos alguns esboços e ideias de como poderia ser esse personagem. Uma das características que definimos, logo de cara, é que ela teria um olhar bem marcante.
Concepção de olhares e rostos
Concepção de personagens
Optamos no final pela escolha de formas arredondadas e fluídas, que remetessem a estrutura da água, o elemento de mais importância, que liga e conduz a narrativa.
O design de personagem precisa ser bem específico em relação a silhueta e medidas de partes e proporções, pois mais de uma pessoa terá que animar, então é necessária uma padronização dessa arte. Para resolver isso, normalmente é utilizado o chamado “giro de personagem”. Isto é, o desenho em mais de uma posição, normalmente de frente, lateral e perfil. Quanto mais detalhado, melhor.
Da mesma forma que a escolha das referências é importante para o design de personagem, é também para a concepção do cenário, da iluminação e dos objetos em geral.
Essas foram algumas das nossas referências mais importantes nesses quesitos:
Referências de cor, esquema de cores e iluminação
Referências de bicos de mochila CamelBak, carros e armas
Referências de movimento de pano e dança rítmica
Como a história se passa em uma realidade em que Belo Horizonte se tornou um deserto, escolhemos utilizar como parte do cenário alguns locais marcantes da cidade, para que o espectador pudesse facilmente identificar o espaço-tempo, já que essas seriam as primeiras cenas da animação.
Essa ambientação é algo importante a se considerar na hora de criar os cenários, para que faça sentido geograficamente a movimentação da personagem e a forma como a luz irá incidir nela ao longo da história.
Ambientação dos pontos turísticos de Belo Horizonte no Animático
Feita essa ambientação, começamos os testes de conceitos visuais, cores e formas, baseados na referências que mencionei acima.
Depois de vários testes e votações, definimos o design do cenário, os pincéis e efeitos de pintura que utilizamos, a paleta de cores e como estas iriam se comportar durante o trajeto da personagem na história.
Para ter uma noção melhor de como seria a passagem de tempo ao longo dos cenários, fizemos um mapa de luz, para calcular a posição do sol e da lua e assim descobrir como luz e sombra iriam incidir sobre a personagem e o cenário em cada cena, já que nossa história começa de manhã e termina a noite, possuindo uma variação de iluminação e cores.
Decidimos também, para dar ênfase no cenário dos monumentos, nas cenas iniciais, utilizar a colagem a partir de fotografias destes locais. Escolhemos as fotos e compusemos, por cima delas, através de desenhos, manipulação e montagem das fotos, o ambiente que queríamos criar a partir daquela realidade do local. O primeiro teste de colagem ficou assim:
Ufa! Já foi muito trabalho, né?
Mas é muito importante que todos esses detalhes e decisões estéticas estejam muito bem definidos, porque quando começa a animação em si, acaba sendo tarde demais para fazer alterações, sob o risco de perder muitas e muitas horas de trabalho.
Em um processo longo como esse, é muito importante manter a organização do projeto, isto é, organizar as pastas referentes a cada etapa da produção, estipular datas limites para tomada de decisões conceituais e entrega de materiais, manejar a divisão do trabalho entre o grupo, etc. Para ter excelência nessa organização, é muito importante a criação e utilização de planilhas. Parece chato, mas é inegável o quanto essa prática deixa o trabalho mais dinâmico, além de dar uma noção do tempo de realização e conclusão do projeto.
Tudo organizado e planificado, bora animar? Calma lá. Ainda falta uma etapa antes de partir para a animação em si.
A animação pose a pose consiste na criação primeiramente das poses-chave, quadros-chaves, ou keyframes, que são marcações das principais posições da personagem em um determinado movimento. Uma vez criadas essas poses, são feitas as poses intermediárias, ou in betweens, as demais posições que ligam essas principais, tornando o movimento fluido. A quantidade normal de desenhos por segundo para fazer uma animação fluida é de 24. Ou seja, em cada segundo de filme há 24 quadros (imagens).
Uma animação feita somente com os keyframes é mais travada, menos fluida, mas permite temporizar os movimentos e definir o ritmo das ações. Por isso, como uma pré-visualização do tempo da cena animada, é comum o uso dos animáticos, que são versões do filme completo no tempo, mas sem os frames intermediários, somente os quadros-chaves, que ajudam a definir essa temporização das cenas.
Para essa animação, fizemos cerca de 20 animáticos (!) até chegar em um resultado que gostamos, sempre tentando completá-los conforme íamos fazendo as poses intermediárias, até que uma hora o resultado do animático fosse a animação completa, com todas as poses desenhadas.
Outra coisa importante antes de começar a animar é o desenho do layout de cada cena, que é o esqueleto da animação, a imagem que demarca a posição de cada elemento em determinada cena, servindo como um mapa do movimento.
O layout serve para detalhar o caminho para o trabalho dos animadores de poses chaves e do designer e animador dos cenários. É um desenho bem técnico que tem o papel de passar essas informações de composição e organização das imagens dentro do quadro, definindo seu formato e tamanho.
Exemplos de layout
Exemplos de keyframes
Depois de prontos todos os desenhos de poses chaves e intermediárias, concluindo a animação, é hora de colorir cada um dos mais de 3000 frames. Nessa etapa, contamos com a ajuda de calouros que foram incríveis, aprenderam tudo super rápido e ajudaram MUITO a acelerar esse processo. Para que todos os coloristas tivessem uma referência de como pintar os desenhos, fizemos um frame finalizado de cada cena em sua composição final, para servir de base para a pintura.
Stills dos frames finalizados
O processo de coloração é muito intenso, então tivemos que conferir todos os frames e fazer as correções que achamos necessárias, o clean up, que significa corrigir cores que saíram um pouco da linha, traços etc. Como o nosso filme foi feito para ser mais orgânico imageticamente, não nos preocupamos tanto com algumas linhas fora do lugar, pois, para nós, algumas distorções eram interessantes visualmente. As animações do cenário e personagens foram feitas e coloridas separadamente, para depois juntar tudo na edição.
Nessa etapa, com tudo já pronto, cenas animadas, sonoplastia, trilha sonora, aí sim partimos para a edição, para unir todos esses elementos e montar o filme. Nesse momento também foram criados e adicionados alguns efeitos digitais de pós-produção, como as ondas de calor, o painel do carro e a projeção holográfica do dispositivo localizador de água, além de outros elementos como créditos, logos e letterings.
E aí? Ficou animado para produzir sua animação? Ficou assustado com a quantidade de processos? Imagino que sim! Mas hoje em dia há diversas formas de criar animações, uma grande variedade de técnicas e formas de desenvolver esse tipo de trabalho. Também há de se pensar que numa escala de grande produção, cada profissional fica responsável por uma etapa do processo, sendo possível escolher uma área que mais agrada e focar no aperfeiçoamento da mesma.
Neste guia eu quis trazer parte da minha experiência, exclusivamente, no processo de criação desse videoclipe, que pode servir como auxílio para quem quer entender mais sobre esse mundo ou como inspiração para quem já navega por esses mares, mas ainda não chegou a realizar um projeto na área.
Fazer animação é ter a possibilidade de criar universos onde o único limite é a criatividade, é poder expressar, de formas metafóricas ou não, vivências e momentos, trazendo vida e movimento a narrativas ou pensamentos, tornando-os experiências únicas. A definição de animar é dar alma, tornar vivo um objeto ou conceito inanimado, e isso estreita nossa relação com o mundo e com nossas percepções.
Observação: Não entrei em detalhes sobre softwares utilizados ou técnicas específicas, pois há uma variedade enorme! Deixo aqui então alguns materiais e indicações de sites para quem quer continuar pesquisando sobre animação em geral e aprofundar mais em determinados conceitos.
Para mais informações sobre animação:
https://guiadoestudante.abril.com.br/tudo-sobre/animacao/
https://eba.ufmg.br/caad/index.php/animacao/
https://www.bndes.gov.br/wps/portal/site/home/conhecimento/noticias/noticia/processo-animacao
https://ecdd.infnet.edu.br/guia-o-que-e-animacao/ https://institutodecinema.com.br/mais/conteudo/historia-da-animacao-no-brasil
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Sobre a artista
Gabrielle Curi é uma artista multimídia, formada em Cinema de Animação e Artes Visuais pela UFMG e sócia da produtora audiovisual Rato Alado Filme. Seu trabalho perpassa pela criação de ilustrações, colagens, filmes, animações e videoarte, que buscam traduzir sua visão de mundo. Atualmente seu foco é a criação de projetos que abordem possibilidades de futuros em uma realidade de crise climática.